Eclipse social às vésperas de uma ditadura

VERMELHO SOL

Determinado a lançar um olhar original sobre a Argentina dos anos 1970, Benjamin Naishtat situou a ação de VERMELHO SOL não no período ditatorial, mas no ano de 1975, que o antecedeu, quando um caldo de extremismo e ambiguidade moral já dominava corações e mentes no país. Ou pelo menos sua classe média provinciana, a que pertence a família do advogado Claudio (Darío Grandinetti). Numa das primeiras sequências do filme, o vemos participar de um incidente num restaurante, quando exibe seu ar de olímpica superioridade. Logo em seguida, o fato terá um desenrolar trágico que vai detonar a trama policial.

Naishtat, contudo, retarda essa trama para inserir uma série de observações sobre o comportamento coletivo da cidade fictícia de Granada, submetida a uma intervenção federal que já prenuncia o golpe militar de 1976. As anotações de um estado de violência latente se propagam em torno de Claudio para além do incidente inicial: um amigo quer armar um golpe jurídico para tomar posse de uma casa abandonada e já saqueada; o namorado da sua filha é um potencial estuprador e pitbull de província; a prefeitura confraterniza com uns patéticos cowboys americanos (símbolos da “nossa nação irmã” – e qualquer semelhança com o concubinato Bozo-Trump não é mera coincidência). Até um comercial de chocolate da época acenava com o apelo letal.

A atmosfera de intoxicação social é palpável na maneira como Naishtat arma suas cenas, explorando o suspense dos tempos lentos e a fria precisão das tomadas do fotógrafo brasileiro Pedro Sotero, o mesmo de Casa Grande, O Som ao Redor, Gabriel e a Montanha, Aquarius e Bacurau. O estranho clímax desse percurso é a passagem de um eclipse lunar, aparente metáfora do obscurecimento moral que atinge aquele grupo social às vésperas de uma catástrofe maior.

Para quem ligar suas expectativas ao plot principal, a sucessão de subplots poderá parecer dispersiva. Até porque a trama policial acaba soando mais pitoresca do que efetiva a partir da entrada em cena de Alfredo Castro como um jocoso detetive chileno inspirado no Columbo da TV. Por isso é importante compreender de antemão a proposta de Naishtat. Seu comentário sobre o oportunismo, a arrogância, o desejo de violência e o relativismo ético da Argentina naquele momento usa o gênero somente como um atalho.  

2 comentários sobre “Eclipse social às vésperas de uma ditadura

  1. Se o crítico precisa explicar que não é para levar o plot a sério, é sinal de que algo não funciona nesse filme que tem grandes atores, como Grandinetti e outros. O grande mérito de Vermelho Sol é recriar a atmosfera vivida na Argentina antes do golpe, algo que estava no ar e portanto difícil para o cinema, um submundo violento, a política e as instituições derrubadas. Pode até lembrar o que estamos a viver. Não é à toa o tom púrpura do eclipse que prenuncia o banho de sangue que viria a seguir com a ditadura militar de Videla et caterva. Mas tenho a nítida sensação que o diretor não conseguiu decidir o tom do filme que ele queria fazer. Saí frustrado, talvez por tudo o que havia sido falado sobre este filme.

    • Eu saí com uma sensação parecida. Daí que enfatizei no meu texto a construção de atmosfera em detrimento da trama policial. Sua interpretação mais “sangrenta” do eclipse também é bastante apropriada.

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