CICATRIZES
“Mais de 500 famílias na Sérvia procuram por bebês desaparecidos. Até a data deste filme, nenhum caso foi resolvido”. É o que informa um letreiro ao final de CICATRIZES (Savovi). Outras fontes dão conta de milhares de pais ainda reivindicando saber onde seus filhos foram enterrados, se é que morreram. Os desaparecimentos vêm desde os anos 1970, e o governo da Sérvia já foi declarado culpado de violação pela Corte Europeia de Direitos Humanos.
O tenso CICATRIZES se inspira em uma dessas histórias reais com impecável rigor. A câmera é imantada pela atuação minuciosa de Snezana Bogdanovic no papel da costureira Ana, que teve um filho dado como natimorto 18 anos atrás num hospital público. Ela não pôde ver o corpo do bebê e, ao contrário de outros membros da família, recusa-se a se conformar com isso. Sua persistência, vista como mórbida, parece já tê-la afastado do marido, da filha e do convívio social. Ana tampouco aceita inteiramente a ideia de que a criança tenha de fato morrido. Na Sérvia já foram levantadas suspeitas de que os bebês eram roubados para venda no mercado de adoções ilegais.
A interação do roteiro de Elma Tataragic (que escreveu também Deus é Mulher e seu Nome é Petúnia) com a direção de Miroslav Terzic é primorosa a nível de detalhes. Cada cena possui um arco próprio de suspense e imprevisibilidade, com informações administradas a conta-gotas, de tal maneira que nosso interesse é constantemente renovado. Tudo é preciso e econômico – da escassez de diálogos que privilegia as reações da emoção às elipses elegantes que nos poupam de toda obviedade. Os Irmãos Dardenne certamente gostariam de assinar esse filme.
Em ritmo lento mas magnetizante, o périplo de Ana em busca da verdade descortina uma Belgrado desolada e melancólica, ainda com jeito de Leste europeu da era comunista. A aspereza e a incomunicabilidade nas relações entre as pessoas são sintomas de uma sociedade endurecida e resignada com os absurdos cometidos pelo estado.
O que CICATRIZES não menciona é a existência de um movimento de pais e mães que cobram explicações e reparações do governo. O filme foi patrocinado pela Fundação Hemofarm, organização sérvia da área de saúde, educação e cultura.
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