O público do Cineport teve a rara oportunidade de ver ontem o vencedor do Troféu Andorinha de melhor filme, o português Morrer como um Homem. Injustamente remetido ao gueto dos filmes gays, o terceiro longa de João Pedro Rodrigues (O Fantasma, Odete) dificilmente chegará ao circuito comercial brasileiro. Mas está longe de ser mera curiosidade segmentada. É um filme surpreendente, comovente e requintadamente concebido, situando-se numa linha imaginária entre as velhas comédias irreverentes de Almodóvar, a tragicidade do Fassbinder de Num Ano de Treze Luas e os musicais de Jacques Demy.
Para nós brasileiros é fácil perceber por que o protagonista se chama Tonia e usa aquelas perucas de algodão doce loiro. Tonia é um artista transformista que já deixou para trás a juventude e se vê confrontado com uma decisão difícil: o namorado Rosário, um jovem junkie, exige que ele faça a operação para mudar de sexo. Mas Tonia, como católico fervoroso, entende que deverá morrer como nasceu. Para agravar a situação, a doença chega nesse momento de impasse, junto com um filho há muito abandonado, que deserta do exército depois de matar um amante e volta para a casa do pai.
Os subtemas – e os enigmas – se entrelaçam em compasso cadenciado, interrompido aqui e ali por interlúdios em que os personagens cantarolam, balbuciam ou simplesmente ouvem canções. A expressão do título tanto pode se referir ao episódio do prólogo envolvendo os dois soldados homossexuais na mata (não resisto a usar o termo “forças amadas”), como ao destino que Tonia almeja em sua complicada equação mental. O namorado de Tonia pode personificar um reflexo edipiano, assim como os dois cachorros (um fofinho caseiro e um vira-latas) fazem um paralelo claro com as dicotomias em jogo. Um terceiro vértice dessa formação será o estranho casal queer que Tonia e Rosário vão visitar numa espécie de floresta encantada, com direito a uma excursão para caçar “gambozinos” (vagalumes) e ouvir a solene canção Calvary, do cantor transformista Baby Dee.
Você que não viu o filme pode estar achando tudo isso uma loucura. E é mesmo. Mas é uma loucura administrada com tal senso de propriedade e uma estética tão refinada que tudo parece conversar harmoniosamente. A construção dos planos e os movimentos de câmera obedecem a um rigoroso planejamento envolvendo espaços, atores e mesmo animais. Algumas escolhas refletem o pendor de João Pedro Rodrigues para o não-previsível e o não-classificável. Dos shows de drag de Tonia, por exemplo, só vemos os bastidores, principalmente suas disputas com um jovem travesti negro que pretende eclipsá-lo (o termo não é gratuito). Já as relações de Tonia com o mundo médico são objeto de cenas memoráveis – como a explicação da cirurgia transexual com origami e as abluções hospitalares encenadas em estilo “sacro”.
Exibido na mostra Un Certain Regard, do Festival de Cannes de 2009, Morrer como um Homem faz a mais fascinante, ousada e complexa radiografia que se possa imaginar para a condição transexual num país católico como Portugal. Além disso, e por isso mesmo, é um estudo de contrastes que remete à condição humana em geral, sempre escrava do desejo e da consicência, sedenta tanto de lógica como de transgressão.
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