Ça va, Afrique?

Segundo Joel Zito Araújo, que vai ministrar uma oficina sobre o assunto, existem quatro escolas no cinema africano, segundo a região idiomática: a lusófona, a francófona, a anglófona e a magrebiana A oficina do Joel será na tarde do dia 11/7, dentro da Mostra África, Cinema – Um Olhar Contemporâneo, que começa hoje (terça) na Caixa Cultural RJ (veja detalhes no site).

A seleção, do curador João Juarez Guimarães, privilegia a escola francófona, com 16 filmes, e inclui apenas um da África lusófona, A Virgem Margarida, de Licínio Azevedo, brasileiro radicado em Moçambique. Destacam-se as retrospectivas parciais do mauritano Abderrahmane Sissako (Timbuktu, Esperando a Felicidade, Bamako) e do chadiano Mahamat-Saleh Haroun. Menos conhecido por aqui fora do circuito de festivais, Haroun é um dos cineastas mais habilidosos e sofisticados em atividade atualmente. Seus filmes me parecem o maior presente trazido pelo evento.

Mahamat-Saleh Haroun vive na França desde 1982, mas seus filmes estão cravados na realidade do Chade. A capital do país, a rústica e amarela N’Djamena, é o cenário de todos os que já vi. Cada um deles encerra uma questão moral, cujo personagem central precisa enfrentar para acessar um determinado objetivo. Vários deles tratam da relação pai-filho, seja ela biológica ou não.

Já no seu primeiro longa, Bye Bye África  (1999), Haroun tematizou o drama de consciência do cineasta exilado. Num mix de documentário e ficção, ele retorna ao Chade por conta do falecimento da mãe e decide fazer lá um novo filme. Convoca e entrevista candidatos a atores em esquema semelhante ao do iraniano Salve o Cinema. Documenta o estado dos cinemas na cidade, quase todos destruídos por anos de guerra civil. Refaz contatos com amigos e reencontra uma jovem com quem ele havia filmado tempos atrás. O papel de uma mulher aidética a estigmatizara socialmente e arruinara sua vida. “O cinema é mais forte do que a realidade”, diz ela.

Desde essa ficção rouchiana germinada do real, Haroun se impunha como um realizador de gosto contemporâneo, certeiro no manuseio da linguagem e senhor de uma narrativa elíptica, mas sólida. A maneira como seu personagem em Bye Bye Africa vai abandonando projetos e relações pelo caminho sugere, talvez, uma estratégia de sobrevivência em relação a suas origens. Foi preciso dizer adeus à África para que o cineasta pudesse continuar ligado a ela através do trabalho. Depois de se tornar habituê dos grandes festivais europeus, Haroun tem ajudado – como nos informa Joel Zito – a revigorar o cinema no Chade, propiciando a abertura de novas salas e dirigindo uma escola de cinema de nível internacional.

Temporada de Seca  (Daratt, 2006), coproduzido por Sissako, parte de ecos da guerra entre muçulmanos e cristãos. Ao tomar conhecimento de que os criminosos de guerra foram anistiados, o jovem Atim decide fazer justiça com as próprias mãos contra o homem que havia matado seu pai. Quando enfim o encontra, as coisas não correm como ele esperava. Nassara, o assassino (Youssuf Djaoro), é um homem generoso, um padeiro também machucado pela guerra, e que o acolhe como a um filho. O drama se desenrola num alto nível de ambiguidade, tornando complexas as noções de culpa, vingança e impunidade. Haroun dá um exemplo do roteirista sensível que é ao utilizar recorrentemente o pão como veículo dos sentimentos e emoções dos personagens.

A água é o elemento simbólico e narrativo principal de Um Homem que Grita  (2010), o melhor dos filmes de Haroun que conheço. Na história, Adam (novamente Youssouf Djaoro) é um orgulhoso ex-campeão de natação que trabalha como salva-vidas na piscina de um hotel chique de N’Djamena. É auxiliado pelo filho, que faz sucesso entre os jovens hóspedes, ex-soldados e brancos ricos. O hotel foi adquirido por chineses e passa por um processo de downsizing. Empregados são demitidos e Adam é rebaixado a guarda-cancela da portaria enquanto o filho ocupa seu lugar na piscina. O uniforme de porteiro, curto demais para o longilíneo Adam, simboliza sua humilhação, fazendo um paralelo em sentido contrário com o célebre personagem de Emil Jannings em A Última Gargalhada, de Murnau, que sofria por perder seu lugar (e farda) de porteiro de um grande hotel.

A aproximação de rebeldes em desafio ao governo central (fato real acontecido em 2007) vai detonar o drama pai-filho e descortinar um quadro estarrecedor de como a política interfere duramente na vida privada dos cidadãos chadianos. A cessão de filhos para o exército em troca de uma promoção que beneficiará toda a família é um dos capítulos mais dolorosos da história recente do Chade. Ganhador do Prêmio Especial do Júri em Cannes, Um Homem que Grita privilegia os tempos interiores e os silêncios dos personagens em vez da ação e da informação didática. Ainda assim, seguimos com clareza as injunções sociais e emocionais de uma história em que a humilhação cede lugar sucessivamente à mesquinhez e à culpa.

O trabalho mais recente de Haroun também está na mostra e é tão absorvente quanto os demais. Grigris (2013) foi concebido especialmente para o ator Souleymane Démé, exímio dançarino de street dance apesar de ter uma perna amortecida pela paralisia. Souleymane/Grigris se exibe em bares e casas noturnas por trocados das plateias que o adoram. Mas quando o padrasto fica gravemente doente, ele precisa ganhar dinheiro suficiente para pagar o hospital. Envolve-se com uma gang de traficantes de gasolina, ao mesmo tempo em que se apaixona por uma prostituta que sonha se tornar modelo (e usa uma peruca afro sobre o cabelo liso para atrair clientes brancos).

Grigris combina melodrama, elementos de musical e thriller de gângsteres numa trama impecável, que evolui até um surpreendente desfecho de solidariedade feminina. O elétrico ator central é um achado dramático de primeira grandeza. Em torno dele, a câmera de Haroun se move com suprema elegância, enfatizando os intensos amarelos e azuis de N’Djamena.

De Haroun a mostra vai exibir ainda o média-metragem Kalala (2005), documentário sobre um colaborador e amigo do diretor que morreu de Aids em 2003.

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