Numa cena de Incompreendida (Incompresa), a pequena Aria está assistindo a Quando o Amor é Cruel (Incompreso), clássico de Luigi Comencini sobre as dores da infância. A citação deixa claro que Asia Argento procura se inserir numa linhagem importante do cinema italiano, “il cine dei bambini“. Ao mesmo tempo, ela quer criar alguma coisa de muito pessoal, alimentada por nutrientes autobiográficos (Aria soa como um composto de Asia com Daria, nome de sua mãe). O filme, de fato, tem a cara da diretora: irreverente, provocativa, indisciplinada.
Aria tem nove anos e acha que, afora uma amiguinha da escola, ninguém mais a ama neste mundo. Os pais, ególatras e levianos, a rejeitam, preferindo ligar-se aos filhos de seus respectivos casamentos anteriores, e logo se separam. O menino por quem Aria está enamorada parece que não a vê. Todos a culpam por tudo o que dá errado. Ela vive de uma casa para outra com seu gato preto numa gaiola, à espera de um gesto de carinho. Esse vácuo afetivo abre espaço para pequenas perversões infantis, como a prenunciar um futuro no mínimo agitado.
Asia Argento não é dada a sutilezas nem a roteiros bem organizados. As cenas de Incompreendida se sucedem sem criar progressão dramática nem guardar coerência no comportamento dos personagens. O fluxo aleatório pode levar do realismo cru ao delírio punk em questão de segundos. Um drama punk infantil, sou tentado a dizer. A cenografia extravagante, com uso intenso de cores fosforescentes, propõe uma versão burlesca do visual de 1984, época em que se passa a ação, e quando Asia tinha a mesma idade de Aria. A última cena, já cruzada a fronteira entre realidade e fantasia, mostra a menina dirigindo-se à plateia com um pedido. Asia Argento pode parecer rebelde, mas, afinal, tudo o que quer é ser amada.
Uma curiosidade: entre as doidices da mãe de Aria (Charlotte Gainsbourg) está uma viagem “aos trópicos”, de onde volta cantando hino do Santo Daime. Em 2013 Asia Argento dirigiu e estrelou o curta Firmeza no ambiente do Daime (veja aqui).