Foram quase dois mil filmes produzidos na Índia em 2016. O número de espectadores se contam no dígito dos bilhões e as salas de cinema somam cerca de 13 mil. De tudo isso, é quase nada o que chega a ganhar alguma circulação internacional, lugar ocupado pela produção hegemônica de Bollywood. Para quem quiser ter um gostinho do restante, começa nesta sexta-feira, no CCBB-Rio, a mostra Novo Cinema Indiano.
Serão dez longas-metragens selecionados na produção recente de sete diferentes regiões – e idiomas – da Índia. Os curadores Carina Bini, brasileira estudiosa da cultura indiana, e Shankar Mohan, professor e um dos principais gestores de cinema da Índia, estarão conduzindo um debate no dia 12, às 16h. Eles vão detalhar como esses filmes são capazes de “representar e iluminar seus diretores, atores, tradições culturais e as preocupações sociais que estão atualmente moldando o curso do cinema indiano”, como afirma Mohan.
O filme de abertura, Armadilha (Ottaal), é inspirado no conto Vanka, de Tchekhov, e alude ao trabalho escravo infantil. O menino Kuttappayi, depois de mais um dia de labuta árdua e maus tratos numa fábrica de grande cidade, escreve uma carta pedindo socorro ao avô, com quem antes vivia no campo. O filme, apesar de certa ingenuidade típica de um cinema mais sentimental, situa com adequação o drama de muitas crianças indianas do interior vendidas para o mercado de trabalho.
O diretor Jayaraaj (é comum ser tratado apenas pelo prenome nas artes indianas) ocupa-se principalmente em relatar a convivência do garoto órfão e seu avô nas águas remansosas de Kerala, um dos estados mais bonitos da Índia. No cenário deslumbrante de um santuário de pássaros, Kuttappayi aprende com o avô a compreender a natureza, desperta para o interesse pela educação formal e faz amizade com um menino de casta superior. Assim o filme adapta a situação básica do conto russo de Tchekhov para o contexto da sociedade indiana atual com seus dogmas perenes de discriminação e seus códigos de sobrevivência familiar. Entre várias metáforas construídas no âmbito da natureza destaca-se a da galinha que é colocada para chocar os ovos dos patos selvagens e depois é afastada dos filhotes, que ficam entregues à própria sorte.
Armadilha flui lento e suave como a vida em Kerala. As paisagens das backwaters se estendem na tela panorâmica com uma majestade serena. Os sons das aves e dos cantos populares enchem o ar.
A programação abrange temas e fazeres cinematográficos bastante diversos. Cinemawalla, por exemplo, conta a história de um homem e sua luta pela sobrevivência de um cinema de rua voltado para exibição de filmes em película. O Ovo do Corvo descreve as aventuras de dois meninos que sonham em conseguir dinheiro para comprar uma pizza. Geragalu fala de um grande artista cujo sucesso lhe subiu à cabeça. Punhalada no Coração é um musical da região de Maharashtra sobre a relação de um cantor com seus dois gurus. Apur Panchali é um documentário sobre o ator mirim bengali Subir Banerjee, consagrado como protagonista do clássico Pather Panchali, de Satyajit Ray (1955), e que nunca mais voltou a atuar.
Se alguém tiver que escolher um único filme em toda a mostra, eu me arriscaria a recomendar o magistral O Navio de Teseu (acima), de Anand Gandhi. Um triplo conto moral envolvendo transplantes, identidade, ética e justiça, esse filme extraordinário já foi abordado num texto meu que pode ser lido aqui.