Antropólogos não são santos

Chagnon e um inaomâmi

Os filmes de José Padilha são corajosos. Isso implica estarem sempre no lusco-fusco entre a complexidade e o sensacionalismo. Em Garapa, prevaleceu o sensacionalismo. Em Tropa de Elite, as duas coisas se equilibraram e geraram polêmica. Seu último documentário, Segredos da Tribo, junta-se a Ônibus 174 como vitória da complexidade sobre o efeito.

Secrets of the Tribe é uma co-produção da brasileira Zazen (de Padilha e Marcos Prado) com a BBC. Foi adquirida pela HBO depois de estrear no Sundance com resenhas quase perplexas diante dessa visão demolidora do universo da Antropologia. Para quem vê de fora, os antropólogos formam uma comunidade razoavelmente coesa, sóbria e colaborativa. Motivados pelas melhores intenções, os antropólogos modernos também se autoexaminam, procurando assumir e refletir sobre as interferências de seu trabalho sobre os grupos humanos que estudam. Em contraponto à ideia do “bom selvagem”, eles seriam os “bons cultos”, devotados ao conhecimento e à defesa dos povos primitivos.

Mas o que Padilha vai revelar é bem diverso desse quadro, digamos, onírico. São histórias de pedofilia, indução ao homossexualismo, exploração de prostituição, experiências danosas à saúde dos índios. Não se poupa nem mesmo a palavra genocídio. A tribo do título, claro, é a comunidade dos etnógrafos.

O filme começa com cenas fortes de índios rejeitando a presença de antropólogos em suas tribos. Volta e meia, índios da região do Orinoco (sul da Venezuela e norte do Brasil) aparecem citando exemplos que confirmam a veracidade das denúncias apresentadas. Mas quem faz as denúncias são primordialmente outros antropólogos. Na verdade, estamos no meio do fogo cruzado de uma guerra que usualmente só explode nos limites das páginas das revistas científicas ou num livro como Darkness in Eldorado, do jornalista investigativo Patrick Tierney (2000), publicado no Brasil pela Ediouro como Trevas no Eldorado – como cientistas e jornalistas devastaram a Amazônia e violentaram a cultura ianomâmi. O doc de Padilha rastreia as fagulhas desse livro.

No centro das denúncias estão diversos antropólogos de renome internacional. Napoleon Chagnon, um pioneiro no estudo dos ianomâmi e personagem central do filme, defende-se das acusações de ter construído uma teoria manipulatória sobre o pendor daqueles índios para a violência. Kenneth Good justifica seu casamento  com uma adolescente ianomâmi, que ele levou para uma experiência de vida americana padrão. Jacques Lizot, que se recusou a falar para o filme, é acusado – em detalhes explícitos – de abusar de meninos indígenas e instituir prostíbulos na tribo. O geneticista James Neel, já falecido, teria conduzido experiência de vacinação que exacerbou uma epidemia de sarampo entre os ianomâmi, com a cumplicidade do onipresente Chagnon.

Sobram farpas até para o venerando Claude Lévi-Strauss (1908-2009), que teria acobertado os desvios éticos do discípulo Lizot. Lévi-Strauss é visto relevando a interferência dos antropólogos por ser mais “desculpável” que a dos colonizadores.

Nada soa simples ou unilateral na trama de depoimentos recolhidos por Padilha e montados com a sempre inteligente parceria de Felipe Lacerda. Fica claro, por exemplo, que o combustível das acusações recíprocas vem em grande parte de rivalidades notórias no meio. Napoleon Chagnon e Kenneth Good, por exemplo, não escondem que são adversários figadais. Divergências de interpretação, disputas de primazia e ataques pessoais se misturam numa guerra que, em vez de bordunas, é feita com textos e falas. “Os antropólogos são etnocêntricos e racistas”, atira o antropólogo Good.

Os  ianomâmi, por sua vez, fazem declarações desconcertantes sobre a normalidade do uso do sexo como moeda de troca nas relações com os cientistas. Eles frequentam ainda as cenas de antigos filmes etnográficos que alimentam a inquietação de tudo o que é dito.

Não sei bem o impacto que Segredos da Tribo está produzindo no meio etnográfico. Esses casos extremos, se não abalam o prestígio da disciplina, pelo menos apontam fissuras éticas que se multiplicam em graus diferenciados. Mesmo sendo a discussão levantada por Patrick Tierney já conhecida há pelo menos 10 anos, a força dos depoimentos diretos dos protagonistas é digna de consideração.

O dossiê de Padilha termina com uma espécie de tributo/desagravo a Chagnon na American Anthropological Association e imagens de uma alegre feira de livros de Antropologia. O sentido do filme fica, então, mais claro. Não se trata de encampar esta ou aquela acusação, mas de mostrar que a Antropologia, tomada muitas vezes como algo próximo de uma religião, é na verdade uma ciência suscetível à política, às vaidades e às paixões.

11 comentários sobre “Antropólogos não são santos

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  4. Filme novo de José Padilha critica antropólogos mas é plagio de documentário

    Bom, recebi o email abaixo e gostaria que voce avaliasse, pelo que vi o doc de 2004 existe, até onde é plagio não sei. Gostaria que voce comentasse…

    Oi pessoal,

    Desculpa estar usando esse espaço para isso, mas é por um motivo muito importante pra mim. Voces sabem como eu me dediquei para fazer meu documentario “Napepe”, e voces são prova de que ele existe!! O Jose Padilha (onibus 174 e Tropa de Elite) lançou o documentário dele como inédito esse mes,… mas leiam o texto que escrevi, o filme é basicamente uma cópia do meu só que feito com mais recursos. Ainda tem
    um lado negro dessa história que conto pessoalmente com uma cervejinha. Não preciso dizer que não fiquei bem com essa história…

    Por favor, me ajudem a divulgar, ok?? Confio em voces, amigas pensantes, nessa guerra contra a grande mídia… Enviem para jornalistas, historiadores, antropólogos, … ou repassem a história boca a boca…

    Obrigada! Beijos,

    Nadja

    Filme novo de José Padilha critica antropólogos mas é plagio de
    documentário

    O novo documentário de José Padilha, “Segredos da tribo”, que abriu a 15˚ edição do Festival de Documentários “É Tudo verdade”, apesar de todo bafáfá da mídia, não traz nenhum ineditismo, a não ser para aqueles que ficaram ausentes todos esses anos da polêmica do sangue Yanomami retirado na década de 80. O filme é plagio do documentário “Napëpë”, de 2004, da antropóloga e jornalista Nadja Marin.
    Como infelizmente no Brasil ninguém pode com as organizações Globo, ainda mais quando se têm também o
    patrocínio da gigante inglesa BBC, o documentário independente “Napëpë” não conseguiu atingir a mesma
    divulgação de Padilha. Mesmo com uma qualidade infinitamente superior e isento de sensasionalismos, e apesar de ter chegado a vencer o 8th Gottingen International Ethographic Film Festival e de ter passado em diversos festivais no Brasil, tendo sido também citado na revista Época em 2004 em reportagem sobre o assunto, o documentário não conseguiu fazer tanto barulho quanto parece estar fazendo “Segredos da tribo”.
    O plagio é muito fácil de ser comprovado, bastando apenas uma pesquisa básica no google, ou visualizando o
    documentário de 2004 na íntegra no site do “you tube”. José Padilha sabe muito bem da existência do documentário anterior, apesar de não falar no assunto e não dar o crédito, tanto que chegou a gravar o filme “Napëpë” em um evento na Universidade de São Paulo na ocasião de uma palestra sobre o
    tema com um dos antropólogos entrevistados na sua versão. Talvez o único mérito do filme de Padilha,
    do qual ele pode se gabar, foi ter conseguido entrevistar a principal personagem da polêmica, o antropólogo Napoleon Chagnon. No entanto, o filme tem quatro cenas exatamente iguais às do documentário “Napëpë”, sendo a mais chamativa, a bomba de Hiroshima que explode quando um antropólogo entrevistado fala do tema dos objetivos da expedição de Chagnon, que visava comparar o sangue dos Yanomami – teoricamente a população mais pura do mundo – com o sangue dos sobreviventes da bomba atômica lançada pelos americanos.
    O plagio apesar de ser o elemento mais preocupante do filme, uma vez que Padilha está ganhando orlas de dinheiros em festivais e clamando para si o ineditismo da história, não é o único problema. O documentário “Segredos da tribo” apela para questões morais do comportamento dos antropólogos e se
    baseia em estórias sensasionalistas as quais tenta provar através de uma sequência de depoimentos enviesada, difícil de convencer uma platéia mais atenta e informada. Por fim, a versão plagiada de Padilha deixa de lado a opinião dos Yanomami brasileiros e se esquiva da questão realmente importante e problemática, a repatriação do sangue Yanomami retirado pela expedição de Chagnon e a atual comercialização desse sangue por instituições americanas sem o consentimeto dos índios.

    • Melinda, ainda não tive tempo de ver o “Napepe” na íntegra, daí que não posso fazer um comentário mais sólido. Mas algumas observações posso adiantar: um plágio se configura não pela simples abordagem de um mesmo assunto ou dos mesmos personagens, sobretudo na área dos documentários, onde as possibilidades de leitura de episódios históricos ou culturais são praticamente infinitas. O plágio refere-se à cópia de procedimentos, linguagem, estruturas narrativas etc. Pelo que depreendo da carta da Nadja, afora algumas cenas supostamente iguais, o enfoque é bastante diferente. Até pelo recorte que ela aponta como sensacionalista no filme do Padilha (sobre as questões morais dos antropólogos, que ela não aborda) e mais o fato de o Padilha não tratar da devolução do sangue dos ianomâmi – tudo isso já assinala diferenças fundamentais entre um filme e outro. Nadja aproxima os dois filmes para caracterizar o plágio, mas os distancia para defender a superioridade do dela. A argumentação fica contraditória. Mas isso é apenas uma análise do que leio aqui. Só depois de ver “Napepe” poderei comentar com mais propriedade.

  5. Sem dúvida, José Renato, mas qual documentarista ainda acha que é neutro? Isso acabou, se não antes, na virada dos anos 1950 para os 60. Não acho que o Padilha tenha sido neutro em “Segredos da Tribo”. Pelo contrário, ele se apropria das intrigas dos antropólogos para fazer um libelo irônico sobre a guerra de opiniões, versões, vaidades, disputas etc deles. Mas é o ponto de vista do Padilha, sim, não há a menor dúvida.

  6. Eu acho que é a típica polêmica desinformada. Há quase 50 anos a antropologia vem discutindo que antropólogos não são nem santos e nem anjos. Já há um tempo são reconhecidos os “pecados originais” da antropologia, especialmente aqueles que resultam do fato da antropologia ser uma filha dileta do colonialismo e os muitos outros. Não entendo também a razão da polêmica… Se os autores do filme tivessem dado pelo menos uma passada de olhos em todo o debate da antropologia a partir dos anos 80, ou seja, dos ÚLTIMOS 30 ANOS, talvez se dessem conta de que estas imagens da “Antropologia, tomada muitas vezes como algo próximo de uma religião, é na verdade uma ciência suscetível à política, às vaidades e às paixões” correspondem a um desejo projetado das pessoas sobre os antropólogos e não à realidade prática da antropologia.
    E antropólogos nem possuem tanto “espírito de corpo” assim, a ponto de haver um “Bento XVI” preocupado em “defender a integridade do corpo da santa igreja”.
    Não há ciência que não seja suscetível à política, vaidades ou paixões, e nem ponto de vista que não seja informado sobre alguma posição pessoal de quem observa: “antropólogos são etnocêntricos e racistas”, jornalismo investigativo e documentaristas também…

    • Você tem razão em quase tudo, José Renato. Exceto ao invalidar o filme por levantar uma discussão “velha”. O documentário se atém a fatos específicos, que levantam o véu sobre distorções clássicas da disciplina. O impacto do livro do Tierney foi indiscutível há 10 anos. E o filme recoloca o tema para seus protagonistas. Tudo o que é dito no filme é dito por antropólogos, e não por documentaristas ou críticos de cinema. Daí a importância de se ouvi-los. O filme veicula isso.

      • De fato… Mas documentaristas não retratam “a vida como ela é” ou “a verdade nua e crua”. Documentários também são um ponto de vista sobre uma questão, refletem uma posição e tem uma edição que corresponde ao ponto de vista escolhido pelo autor. Antropólogos há muito abandonaram a ilusão de que “falam pelos seus (sic) nativos”. Cabe aos documentaristas também abandonar a ilusão da verdade, como muito se critica o Michael Moore, e assumir que eles estão falando pelos seus “personagens”, na medida em que editam e elegem e privilegiam um ponto de vista da questão. Documentários são tão neutros quanto as etnografias dos antropólogos…

        Abraço

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  8. Ningu’em, nem sequer os antrop’ologos, vive fora da hist’oria. A antropologia e’ uma tarefa colectiva aberta a todos, aa qual se dedicam (e dedicar~ao) muitas pessoas. Urge nao assumir que todos somos americanos na Am’erica Latina dos anos 70.

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