O cangaço bem-pensante

Vivemos uma era de ódio nas grandes cidades brasileiras. Existe aí na base um ódio difuso contra o capitalismo, o que é louvável, embora ainda não se tenha proposto outro sistema alternativo além do socialismo fora de moda ou do anarquismo insustentável por definição. Mas existe também o ódio dos derrotados em eleições recentes, que aproveitam a “onda” favorável para veicular seus ressentimentos. E ainda o ódio sempre focado e oportunista da direita tirando proveito das frestas que aparecem.

No meio de tudo isso, germina e floresce uma ilusão ao mesmo tempo festiva e sombria de que é chegada a hora de passar a limpo a sociedade brasileira não pelas vias democráticas, mas no grito, na força do constrangimento público, numa espécie de cangaço bem-pensante. Filhos da classe média e da elite cultural se tomam de um fervor sagrado na propagação de um suposto totalitarismo de massa, no qual cada um tem o direito de escolher seu inimigo e mobilizar a multidão contra ele.

O Facebook criou uma espécie de cortina virtual. Por trás dela as pessoas se sentem liberadas para serem cruéis, preconceituosas, inconsequentes. Atiram seus pequenos coquetéis-molotov e ficam à espera do número de curtidores ou dos comentários de aprovação. Com isso dão vazão a seus ressentimentos de classe, de política econômica, de escolha eleitoral e sei lá quantos outros. Criou-se uma certa “poética” da desordem, que envolve um cordão de proteção aos predadores e baderneiros, e o fomento do ódio à instituição policial. Palavras de ordem de morte aos policiais são ouvidas aqui e ali. 

Ora, longe de mim qualquer admiração pela PM carioca, por exemplo. Mas como não ver uma estratégia sadomasoquista nesses grupelhos que instigam situações e não descansam enquanto não chega a reação dos policiais? Há uma volúpia pelas balas de borracha, uma tesão pelos olhos lacrimejantes, que culminam com a choradeira de vítimas, equivalente a um orgasmo invertido.

Tampouco tenho qualquer afeto pela máfia dos transportes do Rio. Mas como aprovar um punhado de marmanjos que se reúnem diante do casamento da neta do “Rei do Ônibus” para xingá-la de “piranha” e mandá-la chupar suas rolas? O caráter de protesto político-econômico cede a vez ao linchamento puro e simples. A desculpa de que não foi usada violência é uma falácia, pois bem se sabe que a violência não é apenas física, mas também verbal, moral e social. Pior que isso, há quem conclame as micro-multidões, municiadas pelas câmeras da Mídia Ninja (esse Pânico da neo-vanguarda revolucionária) a esculachar todos a quem cada um julgue corrupto, adversário político ou, quem sabe, um desafeto qualquer que pegou o seu pendrive e não devolveu.

A disseminação desse ódio surdo, indiscriminado e feroz é tática conhecida do fascismo e da esquerda de corte maoista. Talvez estejamos às portas da nossa versão da Revolução Cultural chinesa, quando aos jovens foi dada a incumbência de “limpar” a sociedade dos males burgueses. A diferença é que hoje, no lugar de um comando central, temos a embriaguez do ódio virtual a distribuir as bordunas.  

3 comentários sobre “O cangaço bem-pensante

  1. Desculpe, não resisti…

    “Do Cinema Novo: uma estética da violência antes de ser primitiva e revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado: somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto não ergue as armas o colonizado é um escravo: foi preciso um primeiro policial morto para o francês perceber um argelino.” (Glauber Rocha).

    A gente anda, anda… é ainda termina na “Eztetyka da Fome”, né?

    • A retórica anticolonialista está longe de se aplicar atualmente, Silvia. Hoje o Brasil é que corre o risco de ser acusado de colonizar. Além disso, protestar com máscara de Anonymous não é nem um pouquinho autóctone.

  2. OK, Carlos Mattos. Eu concordo em muita coisa com você. Mas, ao mesmo tempo, quem se beneficiaria de uma revolta polida e educada? A manifestação cultural da fome é a violência, lembra? E hoje em dia, a gente não quer só comida…

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