Até o dia 29 de julho, o Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, tem duas salas dedicadas aos “Cinepoemas” de Carlos Adriano.
Não são salas de cinema, mas de exposição. Coisa que há muito os filmes de Carlos Adriano vinham merecendo: a chance de serem vistos, revistos, examinados em conjunto ou interagindo entre si. Alguns deles são particularmente vocacionados para exibição em espaços de arte, ao invés de cinemas convencionais.
A exposição E Para que Poetas em Tempo de Pobreza?, com curadoria de Priscyla Gomes, tem um título muito adequado aos dias de hoje. “Um tempo em que artistas são tidos como corruptos e insignificantes”, lembra Adriano. O espaço reúne seis curtas, sendo cinco da série Sem Título, normalmente exibidos apenas em festivais e eventos muito especiais. Eles são exibidos em looping, de terça a domingo, das 11 às 20 horas.
O que os une, antes de mais nada, é serem compostos basicamente de takes alheios, recopilados, repaginados e ressignificados pela argúcia poética de Adriano. Em meio a esses materiais pertencentes a fases e gêneros diversos da história do cinema, ele insere breves e sutis alusões pessoais que, para o público comum, tendem a permanecer como flashes de esfinges. Para ele, contudo, valem o subtítulo da série, Apontamentos para uma autocinebiografia (em regresso).
A sofisticação intelectual do autor se conjuga com uma curiosidade quase juvenil por fragmentos preciosos do cinema, da música e da poesia, além de uma atitude gostosamente lúdica na maneira de tratá-los. Como um escultor de reflexos, ele manipula as imagens em inumeráveis variações, recombinações, intervenções e ilações formais e temáticas.
Dança e chuva
A primeira sala do Tomie Ohtake tem duas telas. Na maior, com som dominante, está Sem Título # 4 – Apesar de Pesares, na Chuva Há de Cantares, uma desconcertante revisita ao musical Cantando na Chuva. Da feliz coreografia de Gene Kelly, através de outras versões da mesma música e de outras canções que falam de chuva, Adriano nos leva a tudo de melhor e pior que o cinema já fez sob os jorros torrenciais: a dança, a graça, o amor, o êxtase, o sofrimento, as lutas, a morte. Numa montagem inebriante, cruzamos com cenas de Méliès, Chaplin, Epstein, Ford, Kurosawa, Antonioni, Paradjanov e Caetano Veloso, entre muitos outros.
A segunda tela da primeira sala exibe Sem Título # 1: Dance of Leitfossil, em que Fred Astaire e Ginger Rogers dançam (melhor seria dizer flutuam) faceiramente numa sequência de Ritmo Louco (Swing Time, 1936). Quem colocar os fones de ouvido terá uma surpresa: a música não é a original, mas um fado (Desfado, na voz de Ana Moura) que refaz completamente o espírito da cena e gera um encaixe tão inusitado quanto inesquecível. Além disso, a edição da sequência, com seus apagamentos e reincidências, produz uma segunda camada coreográfica, que já não é mais dança, e sim cinema.
Poesia e Ozu
Passando à segunda sala do Tomie Ohtake, o visitante encontra duas grandes telas frente a frente e dois monitores numa terceira parede. Numa das telas, com fones de ouvido, passa o filme que dá título à exposição, Sem Título # 3 – E Para que Poetas em Tempo de Pobreza?. Aqui, Carlos Adriano procura o ponto de fervura em que cinema e poesia se transformam um no outro. Como guias nesse território de fronteira, o curta tem Pasolini e Cocteau, poetas que falaram e filmaram com frequência semelhante. Mas a rede tecida pelo cineasta vai bem além, envolvendo Mallarmé, Buñuel, Lorca, Straub, Pound, Godard, Hölderlin, Brossa, Giuseppe Ungaretti… Uma construção em abismo, na qual versos, planos de filmes e considerações dos poetas se cruzam por sabe-se lá que caprichos. O que à primeira vista parece uma coletânea de definições pelas vozes de poetas (reais e encenados por atores) logo se afigura como um estímulo à decifração. Ou simplesmente um chamado ao prazer de coletar pílulas de pensamento original e ressonâncias que reverberam dentro do próprio filme.
Na outra grande tela dessa segunda sala, com som aberto, está o mais recente opus da série, o belíssimo Sem Título # 5 – A Rotina Terá seu Enquanto, uma hai-menagem a Yasujiro Ozu. A poesia verbal aqui dá lugar à elaboração plástica a partir do rigor dos enquadramentos do mestre japonês. Todas as imagens, excertos musicais e quase todos os sons provêm do último filme de Ozu, intitulado no Brasil A Rotina Tem seu Encanto. Adriano recolhe as clássicas imagens caseiras, os gestos simples do cotidiano e sons orais não dialógicos para realçar a singeleza do universo de Ozu.
Mas a operação sobre as imagens é que faz a grande diferença. Tirando proveito do geometrismo da arquitetura tradicional japonesa, Adriano duplica as bordas dos quadros, cria rebatimentos internos nas imagens, amplifica a profundidade dos pontos de fuga e move os quadros como se faz correr as portas japonesas ou os filmes de celuloide no projetor. Alguém já comparou alguns desses procedimentos à estética de Mondrian, mas eu prefiro sublinhar a sua relação com os signos da ambientação japonesa, bem como com o hai-kai pela concisão e a surpresa. Esta, no caso, é o festejo muito pessoal do cineasta com seu novo companheiro, que aparece no filme associado a Ozu.
A Rotina Terá Seu Enquanto começou bem a carreira com o prêmio de melhor curta no último Festival É Tudo Verdade e acaba de ser convidado para a competição “Cinema of Tomorrow” no 41º Festival Internacional do Cairo, em novembro próximo. A inspiração ozuana prosseguirá no próximo filme de Carlos Adriano. Ele já está lapidando Sem Título # 6 – Rara, focado na figura serena da atriz Setsuko Hara em seis filmes de Ozu e em três versões da canção I Go to Sleep, de Ray Davies. Mais uma vez, a aproximação entre elementos a princípio díspares surte um efeito inesperado, refrescante e, afinal, perfeitamente assimilável.
Mar e primórdios
Por fim, os dois monitores da segunda sala do Tomie Ohtake exibem Sem Título # 2 – La Mer Larme e o único curta não pertencente a essa série, Festejo Muito Pessoal.
La Mer Larme, de 2009-2015, dava curso à depuração do luto (mar de lágrimas?) de Carlos Adriano pela perda de seu companheiro de vida e parceiro de trabalho Bernardo Vorobow (1946-2009). O média de 31 minutos compila trechos de poemas e velhos fragmentos de filmes (de 1891 a 1900) ao som de inúmeras versões da canção francesa La Mer, de Charles Trenet. As imagens recorrentes de dois homens conversando num convés e três outros navegando num pequeno barco insinuam uma homoafetividade distante, subjacente ou mesmo romântica. Por fim, flashes de Bernardo e Adriano, assim como radiografias de um cateterismo de Bernardo, concluem o filme-poema como numa assinatura.
Referências pessoais à parte, é mais um opus na já longa paixão do artista pelo cinema dos primórdios. Lá está o famoso plano de Cunha Sales (1897) retrabalhado por Adriano em Remanescências, junto a filmes de Étienne-Jules Marey, dos irmãos Lumière, de Thomas Edison, etc. Essas curtas tomadas sofrem aqui uma pletora de intervenções (negativo, inversões, sobreposições, loopings, apagamentos bruscos), enquanto a música é também randomicamente fragmentada, resultando numa total ausência de qualquer padrão audiovisual identificável.
Por sua vez, Festejo Muito Pessoal é um tributo a Paulo Emilio Salles Gomes, feito por encomenda para o seu centenário. A partir do seu último texto, póstumo, que dá título ao filme, Adriano faz aproximações poéticas entre trechos de antigos filmes brasileiros citados no artigo e obras de Jean Vigo, diretor francês que Paulo Emilio estudou em profundidade. O próprio Paulo Emilio aparece em conversa com o poeta italiano Giuseppe Ungaretti, filmados em 1977 por David Neves. Um tesouro a mais entre tantos que Carlos Adriano retira das prateleiras do esquecimento não para explicá-los didaticamente, mas para mostrar que preservam a força quando mirados com olhar de poesia.