Liberação e contradição

O CORPO É NOSSO!

Em O CORPO É NOSSO!, Theresa Jessouroun criou duas camadas de reflexividade para pôr em debate a liberação do corpo da mulher brasileira e o olhar do macho sobre ele. Uma dessas camadas é ficcional: o ator Renato Góes vive um jornalista branco que, a princípio a contragosto, sai em campo para fazer uma grande reportagem sobre “feminismos”. De saída, num baile funk, ele já topa com uma ex-empregada de sua família, negra (Roberta Rodrigues), com quem mantinha uma relação no passado. Esse encontro vai marcar sua consciência pelo resto do tempo.

A outra camada de reflexividade é documental. Theresa é também uma personagem. É uma documentarista que está trabalhando no tema e serve como mais uma fonte para o jornalista. Tudo converge, portanto, para as entrevistas que ela faz com antropólogxs, historiadorxs e ativistas a respeito da progressiva emancipação do corpo feminino desde o tempo do Brasil colônia até os corcoveantes bailes funk, passando pelas ousadias do maxixe, pelo teatro de revista, pela pílula anticoncepcional, por Leila Diniz, pelo desbunde e outros marcos.

Algumas contradições são dignas de nota nessa abordagem. A pauta dos diversos feminismos, encomendada pelo editor machista ao repórter descontente, acaba sendo absorvida pelo filme pelo seu lado mais pitoresco, sob o pretexto de que aquela seria a primeira de uma série de reportagens. A liberação do corpo da mulher é tratada mais como exposição e erotização do que como tomada de poder sobre si. O debate evolui nessa linha, de maneira didática, até questionar o status contraditório atual, em que a liberdade teria se tornado uma prisão pelo disciplinamento do corpo nas imposições da estética e nas exigências do “saudável”.

O choque de classes e de raças suscitado no início, com o encontro do jornalista e a antiga empregada, permanece subaproveitado nas reflexões ingênuas da má consciência do rapaz até que uma solução algo idealizada se apresente no final. A intenção de problematizar o lugar de fala não se concretiza, uma vez que perdemos a perspectiva do repórter na apuração da matéria – e também porque Theresa confere bem pouca espessura ao personagem.

Só nos derradeiros 18 minutos, com a participação enfim de ativistas negras, o filme atinge plenamente seu alvo. É quando Lucia Xavier, da Organização Criola, questiona indiretamente todo o arrazoado exposto até então. Ela argumenta que as mulheres negras sempre estiveram à frente em matéria de liberação moral do corpo, muito embora enfrentassem as piores barreiras. Entendemos, então, que a questão principal de O CORPO É NOSSO! está nas margens do filme, e não no seu centro.

Theresa Jessouroun prossegue com sua pauta temática ousada, que já abordou o cotidiano de travestis (Alma de Mulher) e de moradores de rua (Quando a Casa é a Rua), o Alzheimer de sua mãe (Clarita) e chacinas policiais (À Queima Roupa). Ao encarar a espinhosa pauta do feminismo nesse novo filme, ela pela primeira vez ficou aquém daquilo a que se propunha.

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