MACUNAÍMA, UMA RAPSÓDIA MUSICAL está em cartaz no Teatro Carlos Gomes a preços populares até 12 de outubro.
Na penúltima peça que dirigiu, Panorâmica Insana, Bia Lessa terminava o espetáculo com o palco sendo coberto por um plástico negro, metáfora do tempo de trevas em que estávamos começando a mergulhar. Macunaíma, uma Rapsódia Musical, ao se abrir com o palco forrado pelo mesmo material, sugere uma continuação daquela cena macabra. Mas seria melhor dizer uma resposta – desabrida, furiosa e atrevida.
“Estamos chegando ao nosso limite”, disse-me Bia Lessa, referindo-se à situação do país, quando comentei que ela estava mais uma vez levando o teatro a um limite. A impressão é nítida pela visceralidade com que a peça se desenrola diante de nós.
O mar de plástico negro é o ventre de onde nasce não só o espevitado Macunaíma (Hugo Germano em atuação sensacional que lembra um Grande Otelo ligado em 220v), mas tudo o que se vê no primeiro ato. O segundo ato se passa em São Paulo, onde o plástico branco ou transparente domina a cena e, junto com caixas de papelão e poucos objetos, produz a avalanche de surpresas cênicas que caracterizam as encenações de Bia. São elevadores, bólidos e até um palácio transparente para abrigar o arquivilão Venceslau Pietro Pietra.
Na parte “paulista” é onde se notam algumas referências ao mestre da diretora, Antunes Filho, autor da mítica montagem de Macunaíma em 1978.
Os atores da Barca dos Corações Partidos – Companhia Brasileira de Movimento e Som, que convidaram Bia para a direção e a concepção visual da peça, se desdobram em gente, pássaros, répteis e peixes, escancarando sua nudez como crianças ou animais. Eles se atiram ao chão desprotegidos, rastejam, erguem-se acima do chão para subitamente cantarem, dançarem e tocarem instrumentos em plena ação. Um tour de force memorável, o oposto perfeito da preguiça proverbial de Macunaíma.
Macunaíma é sem-vergonha como precisamos ser para fazer frente à onda de conservadorismo obscurantista. O sexo, a diversidade, a “falta de caráter” do nosso herói polirracial são as armas de que dispomos como antídotos. Na peça da Barca/Bia, tudo isso está celebrado com imensa alegria e deliciosa picardia. À trilha musical magnífica de Alfredo Del-Penho, Beto Lemos e do grupo O Grivo somam-se os gritos, as falas em tupi e os sons da selva que irrompem de todo lado, perfazendo uma cacofonia surpreendentemente harmônica.
Pela terceira vez consecutiva, desde Grande Sertão: Veredas, Bia Lessa cria uma das maiores atrações teatrais da temporada. Macunaíma talvez seja um pouco longo para quem se cansa facilmente (três horas com intervalo), mas agrada em cheio a quem foge da fast food e procura um banquete.