Uma mostra online da Cinemateca do MAM está colocando em evidência a obra fílmica de um realizador brasileiro sui generis. Marcelo Ikeda, um carioca estabelecido atualmente em Fortaleza, atua em várias frentes como cineasta, crítico, professor, curador e gestor. A face do cineasta está amplamente exposta na retrospectiva Casulo ao Mar, distribuída em quatro blocos neste link da plataforma Vimeo.
Nesta segunda-feira, 5/9, vou participar de uma mesa sobre as interfaces entre suas várias atuações juntamente com ele, a professora Ângela Prysthon e o crítico Ruy Gardnier. Outros debates virão, como consta na programação da mostra.
Entre curtas experimentais e ficcionais, documentários de cinefilia e longas-metragens de pegada intimista, a filmografia de Ikeda cruza fronteiras de linguagem e demonstra uma ligação visceral entre a pessoa do diretor e as imagens que produz. Mais abaixo, trago de volta um artigo que escrevi em 2008 sobre alguns de seus filmes.
Junto com Dellani Lima, Ikeda foi responsável por cunhar o termo “Cinema de Garagem”, que tentou definir um modo de criação e produção, assim como um sistema de recepção crítica, que quer se pautar pela afetividade entre seus integrantes. Por muitos anos, Ikeda acompanhou e participou da atuação do lendário coletivo cearense Alumbramento. Entre outras coisas, fez um filme sobre as filmagens de Os Monstros, chamado Entre Mim e Eles. Cinema de garagem pra ninguém botar defeito. Ao registrar as filmagens, ele não estava interessado na cena em preparação, mas na preparação da cena. A câmera dele estava voltada para os diretores, em seu trabalho de dirigir, atuar e tocar a vida ao mesmo tempo, sem muita distinção entre uma coisa e outra. No prólogo e no epílogo, o geralmente silencioso Ikeda faz mais um de seus filmes-carta, entre seu banheiro e a beira do mar de Fortaleza. É sua maneira de assinar um filme sobre outros que no fundo é sobre ele mesmo, ainda uma vez.
Quase todas as suas atividades já geraram um livro de próprio punho. Cinema de Garagem (2011), por exemplo, escrito com Dellani, se apresentava como um “Inventário afetivo sobre o jovem cinema brasileiro do século XXI” (leia aqui minha resenha). Cinecasulofilia (2014) é uma coletânea de textos do seu blog homônimo, onde ele exerce uma crítica muito peculiar, permeada pela dúvida e pela disposição para a descoberta (leia aqui o prefácio do livro, de minha autoria). Suas análises críticas ressurgiram em 2020, no volume O Cinema Independente Brasileiro Contemporâneo em 50 filmes. Já em Fissuras e Fronteiras (2019), ele analisou a produção do Alumbramento e sua própria relação com o grupo, que passou por importantes transformações (minha resenha aqui).
A longa permanência de Ikeda nos quadros da Ancine lhe deu um conhecimento e uma consciência agudos quanto aos mecanismos de subsistência do cinema brasileiro. Isso está consubstanciado em três livros: Leis de Incentivo para o Audiovisual (2015), Lei da Ancine Comentada (2015) e Utopia da Sustentabilidade (2021).
Diversões (?) solitárias de Marcelo Ikeda
Publicado originalmente no DocBlog (O Globo), em 23.5.2008
Há pelo menos oito anos Marcelo Ikeda faz vídeos caseiros. Três deles são longas-metragens. Caseiros em muitos sentidos. Primeiro, porque são concebidos, gravados (em MiniDV), protagonizados e editados pelo próprio autor. Depois, porque são feitos em casa mesmo, e a propósito de sua casa. São fragmentos de um dia-a-dia que Marcelo encena e recorta com aparente serenidade zen, mas que acabam se revelando grávidos de um enorme mal-estar.
Em alguns casos, Marcelo sai de casa. Em Êxodo, por exemplo, seu longa mais recente, ele sai para passear enquanto o piso do seu apartamento passa por uma reforma. A viagem, no entanto, não é vista como percurso, mas como uma sucessão de cortes abruptos. De uma rua no Centro do Rio para um aeroporto, dali para uma cidade à beira-lago, uma casa alheia, uma fortaleza, uma praia deserta, novos aeroportos, a volta ao apartamento reformado.
O retorno à casa é uma rara figura dramática nesse cinema evasivo e reticente. Em Casa é um registro da volta de Marcelo à casa da família depois de dez anos. A câmera tenta encontrar o que restaria dele na casa e, por outro lado, o que restaria da casa nele. Há, assim, um movimento reflexivo que é bem ilustrado na derradeira cena desse filme, quando ele dirige a câmera para si mesmo através de um espelho.
A casa é sempre um porto (in)seguro, onde se processa a rotina – banhos, arrumações, filmagens, repouso, objetos e móveis – e também o psicodrama do autor solitário. O psicodrama comumente se revela na parte final dos filmes. O longa Desertum se passa quase inteiro numa viagem a Buenos Aires, mas na cena derradeira, de volta para casa, Marcelo filma seu rosto impassível contrastando com gritos lancinantes na faixa sonora. Na parte final de Êxodo, ele é visto diante de uma TV onde proliferam as vulgaridades habituais. Em seguida, o vemos deitar-se, acabrunhado, e abrir um livro sobre Ética.
O que o cineasta talvez procure, no fundo, é uma ética. A ética perdida das imagens e dos sons, que na mídia viraram lixo histérico. Para tanto, Marcelo se lança num paciente trabalho de redução e eliminação.
Elimina, antes de mais nada, a obsessão pelo movimento e a velocidade. Seus planos são geralmente fixos, longos e contemplativos. Em vez da loquacidade urbana típica, ele oferece belíssimos silêncios, frequentados aqui e ali por ruídos ambientais amenizados e experimentações musicais dos irmãos Luiz e Ricardo Pretti. Reduz também a frequentação humana do quadro, privilegiando as paisagens desertas, os saguões de aeroportos mergulhados na madrugada, as salas ermas. Esvazia a expectativa de narratividade, reduzindo-a a um mínimo casual, quase inexistente.
Quando resolveu fazer um documentário sobre o cineasta pernambucano Fernando Spencer (Spencer Ontem, Hoje e Sempre), filmou seu personagem exatamente como costuma filmar a si próprio: sozinho no apartamento ou deambulando pelas ruas, sempre em silêncio e isolamento.
Marcelo Ikeda não me parece propriamente um minimalista, mas um circunspecto. Mais precisamente, um falso circunspecto, cujo prazer é exibir sua circunspecção. As admirações que ele tem no cinema, pelo que sei, não enchem mais de três linhas: Jonas Mekas (o cine-diário), Ozu (a gramática), Wenders (a depuração), Straub (o essencialismo), Dreyer e Bresson (um certo sentido religioso do cinema), Chantal Akerman, Antonioni. Da mesma forma, o público que ele almeja é pequeno e íntimo. Êxodo começa com uma dedicatória aos amigos: “Este filme foi feito somente para os amigos. Ele é um presente. Talvez não seja o presente que você gostaria de receber.”
Essa consciência de que filma para si e para poucos norteia as escolhas de Marcelo. Luiz Rosemberg Filho, amigo e admirador, escreveu a respeito de Êxodo: “É importante que o filme seja o reflexo do realizador, pois não é uma xaropada para o mercado de inutilidades, mas um uso-pensado do caráter melancólico do mundo dividido com todos”. Para Moacy Cirne, Ikeda “não está interessado no espetáculo e sim na escrita – a escrita do filme enquanto objeto semiótico”.
Quem quiser ser mais um “amigo” de Marcelo Ikeda pode procurar alguns curtas seus no Youtube, aguardar a próxima Mostra do Filme Livre (ele é um dos curadores e sempre estreia um filme seu) ou ler seus comentários e textos críticos no site Cinecasulofilia. A noção de casulo cai bem a um realizador que trata o cinema como um culto individual, no altar da sua própria morada.