Passava um pouco da meia-noite quando começou. Eu ainda ordenava pensamentos para o dia seguinte, à espera do sono. Como estava deitado de bruços, foi na barriga que senti o primeiro sinal. Meu estômago pareceu saltar dentro da cavidade. Num átimo, julguei que era um princÃpio de má digestão. Mas logo em seguida, ouvi um estalo abafado muito abaixo de mim. O som chegou amplificado ao meu ouvido esquerdo enfurnado na reentrância do travesseiro.
Do pouco que me lembro das frações de segundo que se seguiram, é impossÃvel distinguir entre o que pareceu alucinação e o que se apresentou como catástrofe real. Sei que os ruÃdos se multiplicaram rapidamente e começaram a chover partÃculas do teto dentro do quarto. De súbito, um volume maior abateu-se sobre as costas das minhas pernas. Antes de sentir qualquer dor, meus olhos aterrorizados ainda viram o retângulo luarento da janela entreaberta deslocar-se dentro da escuridão da noite, enquanto um vácuo se abria sob tudo o que eu pudesse imaginar.
Levei alguns minutos para compreender que tinha sobrevivido ao desabamento do edifÃcio número 33 da rua Itaciguara. Eu e meu colchão provavelmente caÃmos num vão milagroso entre o penúltimo andar e algum ponto inferior, pousando como uma cereja semi-intacta sobre uma imensa pilha de vizinhos mortos, móveis e eletrodomésticos esfacelados, roupas espremidas, latas de ervilhas esmagadas, álbuns de famÃlia destroçados. Fora resgatado por um helicóptero pouco antes que uma reacomodação dos escombros alterasse toda a engenharia do destino que me permitiu continuar vivo. Ou seja, eu tinha sido poupado duas vezes de um mesmo desastre.
Gisela falava comigo pausadamente, à beira da cama do hospital. Ela não tinha noção de quanto a minha sorte realçava o brilho dos seus olhos cor de mel. Ao contrário do que fazia todas as sextas-feiras, não fora dormir na minha casa. Retardara-se no sÃtio dos pais, em Teresópolis, e, temendo uma mudança de tempo na estrada, resolvera descer a serra no dia seguinte. Agora envolvia-me com um olhar onde se acotovelavam alÃvio, culpa, preocupação e – eu saberia pouco depois – dissimulação quanto ao risco de eu ficar semiplégico.
Gisela não era a única a rodear minha cama. Lá estavam minha irmã, meu irmão e três amigos jornalistas. Todos me olhavam como se visitassem um bebê recém-nascido. Quantas vezes eu já tinha visto rostos assim, de baixo para cima, em cenas de filmes em que pessoas festejam um amigo convalescente. Era doloroso e ao mesmo tempo engraçado estar no ponto-de-vista da câmera, em vez de confortavelmente sentado no cinema. Lembro que vê-los ali foi muito reconfortante, não tanto pelo prazer de sua companhia – eu ainda não estava pronto para esse tipo de emoção –, mas pelo fato de que reconhecê-los atestava a validade da minha memória. Ao pensar nisso, repassei mentalmente a data do meu nascimento, o número da minha carteira de identidade, o tÃtulo do livro que vinha escrevendo, os nomes do meu pai e da minha mãe. Os dados estavam todos lá, como soldados em prontidão.
(Esboço de conto inspirado por um sonho estranho, anos atrás)
Ótima sequência de filme-catástrofe intimista! Vc fica defendendo certas figuras políticas, ai tem esses pesadêlos! kkkk! Muito bem escrito! Abraços!
Você só gosta quando escrevo ficção, Bigode. Na hora do documentário, você esperneia 🙂
Também me preocupei de inÃcio (mas se estava escrevendo sobre estava vivo)
Ai, Carlinhos, que susto! Comecei a ler e pensei que teu prédio tivesse desabado! Isso é golpe baixo para prender a atenção do leitor. Pergunta básica: quem eram os três amigos jornalistas? Devem ser os mais queridos, não? Um dia vc conta? Mas só depois de acabar de contar o conto.
Claro que você seria um deles, Susana, mas não saberia dizer os outros. A memória ainda estava um pouco embaralhada 🙂