Viajar pelos desertos e salares do norte do Chile e sul da Bolívia, como fiz há pouco, significa passar muitas horas a bordo de veículos rijos e resistentes, às vezes deslizando em estradas razoáveis, às vezes sacolejando em caminhos de pedras mais afeitos aos passos das lhamas e vicunhas do que às rodas de um carro. Nos trajetos bolivianos, só mesmo a performance dos 4×4 para dar conta da variedade e rudeza dos caminhos. É a partir dos veículos que eu passo a relatar um pouco dessa viagem através das fotos a seguir (clique em cada uma para vê-la maior).
Os passeios podem ser contratados em uma das dezenas de agências espremidas em lojinhas nas ruas de San Pedro de Atacama, o hub turístico dessa região chilena. Elas se misturam com restaurantes, bares, vendinhas de artesanato e de artigos para viajantes. Mochileiros, estradeiros, motociclistas, arqueólogos, astrônomos e turistas de todas as classes se cruzam nas ruas estreitas e empoeiradas de “S.P.A.”. No meu caso, já havia contratado tudo desde o Brasil, pela internet, com a agência chilena Visit Chile.
Um carro cruza o Vale da Lua, uma das atrações mais vistosas do Deserto de Atacama. Resquícios das civilizações originárias e de antigas minas rivalizam em interesse com os caprichos da erosão eólica, dos derramamentos vulcânicos e dos acidentes geológicos que moldaram a natureza. No alto da foto, ao centro, o imponente rochedo conhecido como “Anfiteatro”. Nem todos os hits do Vale da Lua são acessíveis em quatro rodas. É preciso ter fôlego e pernas para chegar a alguns deles.
O pôr do sol no Vale da Lua é um dos pontos altos desse passeio. Não tanto pela altitude, que é de “meros” 2400 metros, nanica para a região, mas pelos efeitos de luz que se formam no vale e nas montanhas. O vulcão Licancabur (à esquerda na foto), o “príncipe dos vulcões” atacamenhos, recebe as refrações do sol que se põe detrás da cordilheira fronteiriça e se tinge sucessivamente de laranja, rosa, lilás e todos os tons intermediários. Os motoristas e guias turísticos sabem aonde levar os carros para os melhores pontos de vista do espetáculo.
Na estrada os carros passam velozes por pequenos pueblos sonolentos sob o sol. Vale a pena parar em alguns deles para sentir o isolamento desses lugares. Na foto acima, a rua principal de Socaire (Chile), vazia como uma viela do Velho Oeste, parece à espera da cena de duelo. Ali vivem trabalhadores de minas próximas e pastores de lhamas. Durante o dia, com todos no trabalho e as famílias recolhidas, tudo se assemelha a uma cidade-fantasma.
Mas cidade-fantasma mesmo é Machuca, pueblito situado numa depressão do terreno a 4.000 metros de altitude. Tudo se resume a uma rua e uma igrejinha num aclive. As casas têm cruzes no teto de palha, cravadas num pequeno pedestal de barro que contém um feto de lhama. Ninguém mora ali de verdade. Cerca de 40 pessoas se alternam ocupando as casas ao longo do ano, com residências fixas em outros lugares. Machuca é apenas uma parada turística na volta dos geisers de El Tatio. As pessoas chegam com fome e param ali para comer empanadas. Mas nem isso tinha quando passei por lá. Ainda assim, ninguém resiste a descer quando passa pela estrada no alto e vê aquela joia com jeito de cidade cenográfica.
A chegada a uma das lagoas altiplânicas é sempre uma expectativa meio mágica. Eis que no meio da aridez proverbial do Atacama surge um rasgo de azul profundo e líquido, geralmente com as bordas alvejadas por um anel de sal. Elas estão quase sempre desertas, e o carro estaciona a três passos dos flamingos que caminham com o garbo habitual à procura de alimento nas águas serenas. Na foto acima (não deixe de clicar nela), a Laguna Miscanti, a mais bela das que visitei.
Os carros que se dirigem aos geisers de El Tatio saem de San Pedro de Atacama entre 4h30 e 5h da manhã. Sobem 2.000 metros em uma hora e meia, na mais completa escuridão. A fumaça dos geisers é vista com melhor contraste nas primeiras luminosidades do dia, num frio geralmente inferior a zero grau. Quando o sol nasce, uma montanha pode se refletir numa poça de água fervente, enquanto as numerosas colunas de fumaça sobem ao céu, como num sabá das bruxas da Natureza.
É comum ver à margem das estradas de maior movimento casinhas como esta, ornadas com flores, inscrição de nomes e às vezes placas de carros. São as “animitas” (alminhas), marcos de memória aos que morreram em acidentes automobilísticos. A “animita” deve estar exatamente onde ocorreu o desastre fatal. Por isso algumas ficam não à beira da estrada, mas no barranco ou no desfiladeiro abaixo, onde presumivelmente a morte se deu. Aqui e ali vê-se também o esqueleto de um automóvel amassado, deixado ali mesmo à sanha dos coletores de partes e peças.
Os carros nessa viagem servem para bem mais que transportar. Podem ser “refúgios” para as emergências sanitárias do caminho (eu mesmo urinei diversas vezes atrás do carro em longas estradas desertas sem nem uma pedra para amparar as necessidades); podem ser a mesa do almoço en route. Na foto acima, nossa mesa está sendo posta pelo motorista e pelo guia bolivianos na linha divisória da fronteira entre Bolívia e Chile. Nesses pontos (“hitos’) ocorre a troca de empresas turísticas entre os dois países. Os turistas passam pela alfândega de saída, são levados até o “hito”, onde são recebidos pelos guias do outro país para prosseguir viagem. Parece uma troca de reféns num trecho que é terra de ninguém.
Quando se sai do ecossistema atacamenho em direção a Potosí, na Bolívia, deixa-se a secura absoluta do deserto e percebe-se ao longe os sinais de chuva. No descampado do altiplano, a chuva é antevista como um fenômeno visual muito definido. Esses sinais, longe de me preocuparem, ampliavam minhas chances de encontrar o Salar de Uyuni alagado, um privilégio dessa época do ano. Mais adiante você vai ver por quê.
Perto de um pueblo boliviano, a parada escolar indica o desejo de futuro, a singela afirmação de esperança no meio do quase-nada.
Tanto na parte chilena quanto na boliviana do altiplano, nota-se um empenho dos governos em abrir e melhorar estradas. Os motoristas precisam estar atentos aos muitos desvios por conta de obras, e os veículos têm que estar preparados para todo tipo de surpresa. Chega a ser misterioso o dia-a-dia de um trabalhador como esse da foto, atuando num lugar em que se viaja por horas sem ver outra viv’alma ou qualquer sinal de domesticidade. Quem os assiste são os vulcões nevados da Cordilheira dos Andes.
O cemitério de trens de Uyuni é uma curiosa atração para fotógrafos e crianças da região. É uma espécie de parque temático desolado e frio, voltado para o passado. Os vagões e locomotivas cobertos de ferrugem são pintados com grafites e inscrições como “Así es la vida” e “Se necesita un mecanico con experiencia”. O lugar serve também como um símbolo da decadência do transporte ferroviário na Bolívia.
Enquanto percorremos o Salar de Uyuni, a impressão é de que estamos andando de carro sobre o mar. As chuvas recentes depositaram uma camada de água sobre o solo de sal, algo que quase sempre pode ser vencido por veículos 4×4, como a Toyotta que nos transportava. O rastro líquido se estende até perder de vista na confluência espelhada do chão e do céu. Nos trechos das margens não delimitados por montanhas, o horizonte desaparece nos reflexos. Sem dúvida, um dos mais belos espetáculos da Terra.
Uma parada em trecho seco do salar. Toda a superfície é retalhada em hexágonos de sal. O chão é duro e plano como uma mesa e tem gosto de sal de cozinha. A horizontalidade radical faz com que as distâncias se multipliquem visualmente, gerando ilusões de perspectiva como a da foto acima. O ar é fino e fresco, apesar do sol forte. Não há nenhum cheiro especial. Só uma vontade irresistível de andar à solta até rapidamente se cansar por conta da altitude de 3.800 metros.
A Ilha de Incahuasi, no meio do Salar de Uyuni, é certamente um dos lugares mais exóticos do planeta. Para começar, não é uma ilha, mas um monte cercado de sal por todos os lados. Os carros chegam ali como se chegassem a um promontório qualquer. A “ilha” é coberta de cactus gigantes, que podem medir até 12 metros de altura, e transpira mitos incas já a partir do nome, que significa “casa do inca”. Subimos por um caminho entre os cactus para circundar o monte e desfrutar das vistas incríveis de 360 graus sobre o salar imenso e o céu azul cobalto.
Numa visão quase surreal, um ônibus faz sua parada diária junto à Ilha de Incahuasi. É a prova de que existe vida comum naquelas plagas inóspitas. Passageiros saltam com mantimentos para os únicos moradores do local, empregados do centro de administração turística. Outros embarcam e o ônibus parte logo em seguida de volta a Colchani, a cerca de 100 km dali.
Olá!
lindas fotos! estou programando para ir ao Salar em Maio de 2013, será que nesta época o salra ainda está alagado?
grande abraço!
Você quer dizer maio de 2014, não? Acredito que não estará mais alagado, pois a estação das cuvas vai de dezembro a março.
Relato e imagens preciosos. Aguardarei o resultado da próxima aventura do casal amigo. Abs,
Reinaldo
Carlinhos e Rosane meus amigos ciganos, fotos lindas e texto que merece ser publicado em cadernos de turismo mundo afora.Faça isso.E fiquei feliz que seu joelho tenha suportado o esforço de subidas e descidas,e aos solavancos do Toiyota, verdadeira prova de fogo.abs.Paulinho
Não cometo mais excessos de caminhadas e subidas como antigamente, mas o joelho deu pro gasto numa boa, Paulinho.
Que delícia reviver as emoções do Atacama através do seu texto e das belíssimas fotos. Infelizmente não consegui fazer a parte boliviana…
Tomara que faça um dia, quem sabe juntando com La Paz e o Titicaca.