Em seu primeiro longa de ficção, exibido ontem na mostra competitiva do Festival de Brasília, Paulo Sacramento mantém-se fiel ao propósito de unir experimentação narrativa com depoimentos fortes sobre a realidade do país. Riocorrente reúne três personagens mais ou menos emblemáticos: um jornalista e guia turístico (Roberto Audio) afeito a compromissos formais e desconfiado da “ditadura do novo”; um ladrão de automóveis (Lee Taylor) de comportamento agressivo e veleidades incendiárias; uma mulher (Simone Iliescu) que é amante dos dois e divide entre eles o seu tempo e os seus desejos; e um menino negro (Vinicius dos Anjos), chamado Exu e adotado pelo ladrão, que passa o tempo vagando pelas ruas e, segundo a sinopse do filme, “é o porvir”.
Com esses elementos, o filme constrói um ensaio audiovisual sofisticado na forma, mas nem sempre nas relações metafóricas que procura estabelecer. Os ratos que devoram pilhas de um jornal paulista, por exemplo, não chega a ser uma figura de linguagem das mais sutis. A narrativa é pontuada por anotações à margem, que revelam um certo didatismo: “é preciso separar os mestres e inventores dos diluidores e beletristas”; “as ideias precisam voltar a ser perigosas”, e por aí afora. Volta e meia aspectos documentais ou pseudodocumentais invadem a pauta ficcional, como o incêndio do Joelma, um homem caído sobre as grades de um prédio, uma minipalestra de Marcelo Grassman sobre as produções do inconsciente ou um menino-prodígio da sinuca que exibe seus dotes. Esses elementos parecem funcionar como signos de contaminação da ficção pela realidade ao redor.
À medida que evolui na tela, Riocorrente vai se confirmando como um estudo enviesado das pulsões presentes na sociedade paulista contemporânea, mas também na brasileira de maneira geral: um desejo de ordem e de prazer convivendo com uma indignação meio catártica. O impulso incendiário das “vanguardas de rua” está ferozmente representado pelo fogo que faz explodir carros, cabeças e paisagens. Esse é apenas um dos aspectos de um brutalismo deliberadamente buscado nas imagens e sons do filme. Galhos esmagados, objetos espatifados, portas arrombadas, motores em combustão, rosnar de animais, serra elétrica, trepadas ríspidas se sucedem na estonteante montagem de Idê Lacreta e na edição sonora de Ricardo Reis. A fotografia, que explora muito bem o contraste entre tons cinzas e clarões, foi a última do grande Aloysio Raulno.
O incômodo provocado na plateia procura ser produtivo para uma certa proposta de “expandir o pensamento” no rumo de um inconformismo que lateja por aí. Mas vejo esse desconforto também como o limite a que se chega com a política e a estética do coquetel molotov, dentro do filme como fora dele.
Dois curtas acompanharam Riocorrente na sessão competitiva de ficção. Fernando que Ganhou um Pássaro do Mar é uma alegoria a quatro mãos e dois países por Felipe Bragança e Helvécio Marins Jr. Um papagaio segue num barco do Rio de Janeiro para uma ilha portuguesa e é recebido pelo tal Fernando, que passa a enviar missivas ao remetente desconhecido. As cenas portuguesas têm um sabor algo pedrocostiano (embora Marins Jr. negue qualquer relação), enquanto as brasileiras sugerem um perfume bressaniano. Índios atacando a administração pública brasileira, offs comentando a crise econômica de Portugal e uma sereia tropical completam essa diletante experiência de criação conjunta.
O curta de animação Ed, já exibido no Anima Mundi, é para mim o melhor do gênero exibido até agora. Trata das diversas personificações de um coelho astro do cinema, evocadas enquanto ele prepara o suicídio. É o Holy Motors da computação gráfica brasileira. Tecnicamente impecável, tem também uma trilha sonora irresistível.