Passado o festival, posso enfim comentar filmes da competição oficial de documentários, de cujo júri fiz parte junto com as documentaristas e professoras Ana Johann e Erika Bauer, a cineasta Julia Murat e o colega jornalista Marcelo Lyra.
O longa vencedor, O Mestre e o Divino, lança uma camada a mais de observação e complexidade ao modelo de trabalho da Vídeo nas Aldeias. Temos aqui um realizador branco (Tiago Campos) que filma a interação entre um cineasta xavante (Divino Tserewahú) e um missionário alemão que vive e filma entre os índios há mais de 50 anos (Adalbert “O Mestre” Heide). O projeto lança a todos numa trama de evocações históricas, ambiguidades da relação entre índios e catequistas, discussões sobre representação cinematográfica e vínculos pessoais que desafiam estereótipos comuns da convivência interétnica.
Com seu jeitão de Jacques Tati na terceira idade, o Mestre é um personagem e tanto. Cenas impagáveis de seus filmes revelam o desejo de não só filmar os índios, mas se construir como herói entre eles, uma espécie de cacique forasteiro. O modelo do herói-mártir indígena Winnetou, criado pelo autor alemão Karl May, pautou um ideal romântico que o Mestre procurou semear entre os índios e o fez ser reconhecido até hoje como um elemento ao mesmo tempo invasivo e constitutivo da identidade xavante atual. Divino foi seu aluno na missão salesiana na aldeia de Sangradouro, e um certo laço paternal não é dissimulado.
O Mestre e o Divino tem humor, inteligência na dupla catalisação do processo de filmagem e a revelação de uma figura e um acervo fílmico inestimável. Abre avenidas para uma compreensão mais profunda do papel do cinema na construção de um saber antropológico. Além de melhor filme, ganhou também melhor montagem e melhor trilha sonora – não só pela música original de Johann Brehmer, mas também pelo uso inspirado da música diegética (tocada dentro da cena) ao longo do filme.
Os prêmios de melhor direção, fotografia e som para longa doc ficaram com Morro dos Prazeres, conclusão da trilogia de Maria Augusta Ramos sobre a relação entre cidadãos e Justiça (no caso aqui, mais a Segurança). Quem conhece o trabalho da Guta não esperaria mesmo correrias e tiroteios pela favela. Ela não está interessada no morro pacificado como espetáculo, mas como lugar de vivências, negociações, espera e tentativa de se construir uma normalidade. O que vemos é sobretudo uma favela relativamente silenciosa, entregue à rotina, como ocorre na maior parte do tempo. Do processo de observação, seleção e montagem emergem os vários ângulos da comunidade ocupada pela UPP: a moradora que reclama da pouca vigilância dos policiais e aqueles que se queixam do oposto, ou seja, da ocupação fardada que ainda provoca rejeição; o carteiro e orientador de adolescentes, que atua como uma espécie de ponte entre moradores e policiais; as conversas entre agentes da ordem, as rondas pelas vielas, as revistas rotineiras, a retórica comunicativa do coronel instrutor, o depoimento de uma policial que prefere esconder sua condição fora do serviço por medo de preconceitos.
O trabalho da diretora, que parte da observação wisemaniana mas avança na fronteira entre o flagrante e, digamos, a encenação documental, requer naturalmente um acesso combinado às situações. Até porque a composição do quadro e o padrão técnico que ela procura não seriam possíveis em procedimentos mais improvisados. Isso gera a impressão de um filme “autorizado”, mas é dentro mesmo dessa circunstância que Guta procura extrair o melhor. Morro dos Prazeres acumula insights, elege calmamente seus personagens condutores e faz o espectador submergir paulatinamente no ambiente do lugar. Daí nasce uma percepção mais matizada para as discussões em torno da política de pacificação. O filme entra em cartaz em novembro.
Nosso júri deu um Prêmio Especial à pesquisa de Outro Sertão, doc de Adriana Jacobsen e Soraia Vilela que explora a vida alemã de Guimarães Rosa no fim dos anos 1930, quando ele era vice-cônsul em Hamburgo. Um belíssimo material de arquivo e uma sugestiva trilha de O Grivo pontuam esse relato da admiração de Rosa pela cultura alemã e sua progressiva conscientização dos horrores do nazismo. Ele chegou a facilitar a emigração de dezenas de judeus para o Brasil, alguns dos quais (ou seus descendentes) são entrevistados pelas diretoras. Um destaque magnífico vai para uma entrevista inédita de Rosa à TV alemã, onde ele fala com mineira pachorra do Brasil, de literatura e “explica” Grande Sertão: Veredas.
Elegemos como melhor curta e melhor trilha sonora (Fabio Baldo) o original Contos da Maré, de Douglas Soares. Num simpático flerte com o gênero do horror, o filme reúne relatos de assombrações e bizarrices no Complexo da Maré. A favela é vista, assim, por um ângulo inesperado, como uma cidade do interior onde se contavam histórias do tipo ao pé da fogueira. O uso de máscaras de animais cria um distanciamento divertido, que se completa ao final quando são reveladas as identidades dos participantes. Um curta “redondo”, que resolve muito bem sua proposta relativamente modesta mas surpreendente.
Os paranaenses Rafael Urban e Terence Keller ganharam o prêmio de direção de curtas por A que Deve a Honra da Ilustre Visita este Simples Marquês? Num formato semelhante ao usado em Ovos de Dinossauro, quadros fixos são “entregues” ao personagem para que ele desenvolva sua autonarração/performance. No caso, um velho colecionador e estudioso das coisas paranaenses (“paranistas”) que apresenta os diversos cômodos da sua casa e conta sua história pessoal. Por menos que possam interessar os fatos e objetos apresentados, não há como negar o efeito poderoso do dispositivo, que revela ao mesmo tempo em que esconde um personagem inusitado.
O Canto da Lona, de Thiago Brandimarte Mendonça (Piove, Il Film di Pio) ganhou fotografia e som direto entre os curtas. Em preto e branco com detalhes vermelhos, o filme teatraliza as memórias de antigos astros e empresários de circo, sem faltar um tempero nostálgico e romântico. Baseado em depoimentos e pequenas performances, dá seguimento ao interesse do diretor pela abordagem de uma cultura popular do passado.
Por fim, demos o prêmio de montagem para o trabalho de Ivan Costa e Dácia Ibiapina em O Gigante Nunca Dorme, curta dirigido por Dácia. A diretora vem acompanhando há anos o Movimento Passe Livre em Brasília e aproveita as manifestações de junho para revisitar essa história que começou muito antes. Filme calcado na simpatia pelo movimento, falha no roteiro ao não fechar sua linha temporal, mas consegue articular muito bem os materiais de arquivo de diversas qualidades e suportes.
Uma observação adicional: comentei aqui os concorrentes de ficção, mas me abstive sobre o vencedor Exilados do Vulcão, de Paula Gaitán, por não tê-lo assistido. Enquanto ele era exibido, junto com os curtas Quinto Andar e Tremor, nosso júri se reunia para as decisões finais.