DOIS DIAS, UMA NOITE não é, claro, o primeiro filme a tratar da crise europeia, mas o faz de maneira especialmente aguda por concentrar toda uma síndrome no drama de uma operária. Sandra (Marion Cotillard) está voltando de uma licença para tratar de depressão e recebe a notícia de que seus colegas de trabalho decidiram trocar a demissão dela por um bônus de 1.000 euros. Ela consegue um segundo turno da votação e tem um fim de semana para convencer pelo menos metade dos companheiros a voltar atrás. Isso é o bastante para Jean-Pierre e Luc Dardenne criarem um drama minimalista sobre humilhação, culpa, solidariedade e gratidão. A crise econômica e a concorrência asiática instituíram na indústria belga (e não só) a era do descarte, em que todo motivo é válido para uma demissão. E ainda uma fórmula perversa em que os cortes de pessoal envolvem também a consciência dos trabalhadores. Sandra encarna, no corpo magro e no olhar massacrado, a catástrofe individual que significa a perda de um emprego nesse contexto. A via sacra da moça ocasiona mais um walk-movie dos Dardenne, cuja trilha sonora são os passos de Marion Cotillard de uma porta a outra. Seco, preciso, com uma câmera que nos coloca em contato com a respiração dos personagens, o filme tem nessa magnífica atriz seu nervo exposto e sua chama comovente de humanidade.
Naomi Kawase considera O SEGREDO DAS ÁGUAS sua obra-prima e esperava ganhar a Palma de Ouro em Cannes no ano passado. Sua reputação junto à crítica internacional é mista. Alguns a cultuam como ninfa de um cinema delicado e transcendente. Outros a consideram pretensiosa e folclórica. Conheço pouco de sua obra para formar um juízo, mas O SEGREDO DAS ÁGUAS, em cartaz no Instituto Moreira Salles (Rio) me pareceu muito bonito, com algumas restrições.
Consta que pela primeira vez Naomi filmou fora de Nara, sua cidade natal. A Ilha de Amami traz paisagens inéditas para o seu cinema, principalmente o mar. De resto, ela segue explorando temas de seus documentários e filmes de ficção: a maternidade, a descoberta do amor, a comunhão dos homens com a natureza, a fronteira máxima da morte. Há duas famílias em cena. A da menina Kyoko é ligada às coisas do espírito, a ponto de parecer um tanto idealizada. A mãe, uma xamã que parece saída de uma revista de moda, está às portas da morte. Já a família do menino Kaito pertence ao mundo do corpo. A mãe trabalha num restaurante e tem muitos amantes. O pai é tatuador e vive em Tóquio. Kaito e Kyoko vivem os reflexos dessas diferenças enquanto ensaiam uma aproximação amorosa.
São muitas metáforas ditas textualmente, o que elimina um tanto da poesia sugerida pelas imagens. Há também um pano de fundo etnográfico (danças, cantos e rituais da ilha) que brinda o espectador mais resistente com duas(!) cenas de decapitação de cabras. Percebo no estilo de Naomi uma tentativa de conciliar a imagem “forte” com os estados contemplativos; e uma linguagem documental de câmera na mão com a composição de planos mais solenes e estáveis.
No fundo, apesar da aparência filosófica, este é um filme que mais entrega ao público do que exige dele. E curiosamente dialoga muito com o brasileiro “Ventos de Agosto”, entre outras coisas pelo tema do afogado que vem dar à praia.
Demorei muito a ver INTERESTELAR. Tinha preguiça para mais uma história de americanos salvando a espécie humana, e com quase 3 horas de duração. Finalmente, achei admirável um blockbuster que não tem medo de encarar a Física Quântica de frente. Como muitos já disseram, tem falação demais, tem aquele tom apelativo na relação pai-filha, tem a habitual lenga-lenga de “acopla!” e “desacopla!” que sempre me leva a ver filmes do gênero como se fossem odisseias pornôs. Em contrapartida, tem 40 minutos finais muito compensadores, quando o túnel espaço-temporal justifica toda a polarização do filme entre a imensidão cósmica e a fazenda empoeirada em algum lugar dos EUA. A caracterização do tempo como um espaço multidimensional em torno do quarto de Murph, a eventualidade de todos os tempos conviverem todo o tempo a partir de um estado de consciência avançado, tudo isso me falou ao espírito, ao som da fantástica space opera de Hans Zimmer. Não sei se compreendi tudo, mas senti uma força.
Não há dúvida de que A ENTREVISTA é uma comédia ruim. Mas para quem esperava menos que isso, até que me surpreendi favoravelmente. De alguma forma o filme tocou o adolescente bobão que ainda sobrevive em algum canto de mim e dei um par de boas risadas. Não tanto com as piadas escatológicas que abundam no filme como espinhas no rosto de garotos púberes, mas com a sátira tanto às vicissitudes da ditadura coreana quanto ao intervencionismo da CIA e à televisão de baixo nível que se faz na América. Se a aventura dos jornalistas bobalhões termina com um final feliz para a dita democracia, o empenho do filme em não ser levado a sério basta para neutralizar qualquer mensagem de guerra fria. A coisa é simplesmente exagerada, tola e careteira como James Franco, mas, desculpem, não me torturou nem ofendeu.
Li por esses dias que LOUCAS PRA CASAR passou de 3 milhões de espectadores. Nesse total ainda não estava incluído o ingresso que eu havia pago naquele dia por conta dessa minha fase de tolerância 100. Fiquei muito impressionado com meia-dúzia de coisas:
1. Que onda de conservadorismo explica tamanha boa acolhida a essa história de mulher fazendo de tudo para casar com o patrão rico e supostamente bonitão?
2. Por que aquelas pessoas no cinema riam de coisas como três mulheres se estapeando ou um casal falando bobagens de duplo sentido sexual?
3. O que justifica qualquer interesse por uma história tão mal contada e cuja “grande revelação” repercute tão canhestramente na trama?
4. Quem criou essa falácia sobre a graça ou o encanto de Ingrid Guimarães?
5. Como alguém aconselha outra pessoa a ver aquilo?
6. Como eu ainda me dispus a perder esse tempo?
Carlinhos, começar o dia lendo suas inteligentes e sintéticas criticas-pensamentos fez bem ao espírito. Obrigado.
Toni querido, começar o dia lendo esse teu comentário é mais do que eu podia esperar.