Corpos em transe

corpo-manifesto

O CachoeiraDoc é um festival de forte presença feminina, seja entre xs oganizadorxs e curadoras, seja entre xs cineastas convidadxs. Naturalmente, as temáticas de gênero e do novo feminismo ocupam grande espaço na programação. Questões ligadas a corpo e identidade dominaram a primeira sessão a que compareci, o programa de curtas denominado Sessão Gênero: A Pele que Vestimos, integrante da Mostra Contemporânea.

Em Reflexiva, produção local dirigida e protagonizada por Clarissa Queiroz Brandão, a adolescente gordinha reflete sobre sua fuga da própria imagem através do acúmulo de bens de consumo. O filme funciona como uma liberação, um encarar-se no espelho da tela. Igualmente confessional, o mineiro Ingrid, de Maick Hannder, traz imagens do corpo de Ingrid Leão no limite entre o cinema e a fotografia. Ingrid rejeitava um corpo masculino que não a representava e resolveu o dilema por meio de próteses e adoção de uma persona feminina.

Saindo dos casos individuais, dois outros curtas tratavam de questões semelhantes em chave coletiva. Virou o Jogo: A História de Pintadas, de Marcelo Villanova, é um painel cativante sobre o empoderamento das mulheres de um pequeno vilarejo baiano. Antes de tudo, é uma surpresa verificar a quantidade de mulheres esclarecidas em local tão modesto. Um movimento de conquistas de direitos, independência e igualdade se deu de alguns anos para cá em Pintadas, quando as mulheres se voltaram contra as muitas faces do machismo. Elas falam, casais falam, numa rede de histórias deliciosas sobre conscientização, autonomia, redivisão do trabalho familiar e liberação sexual no casamento. Como ilustração do assunto, entram em cena músicxs e cantorxs locais, além de uma divertida partida de futebol feminino. Clique aqui para ver o filme completo no Youtube.

Bem longe da singeleza e da graça do povo de Pintadas, o elenco de Corpo Manifesto (foto acima), da paulista Carol Araújo, é composto por intelectuais e ativistas.  Laerte, Márcia Tiburi e outrxs se juntam a imagens de Simone de Beauvoir e Angela Davis num coral de vozes sobre biopolítica, diversidade de gênero, direito ao aborto, etc. Depoimentos, materiais de arquivo, performances e cenas de manifestações políticas dão conta de toda uma pauta atual do feminismo, que se estende a questões de raça, binarismo sexual e oposição ao capitalismo.

Foi curioso ver a plateia da sessão vespertina, majoritariamente composta por estudantes do ensino médio, concentrar o debate após a sessão em opiniões sobre o aborto. A primeira menina, muito nervosa, pediu licença para se manifestar contra o que considera uma interrupção da vida. Outros a secundaram com palavras de apoio ou discordância, sugerindo que o tema, ao menos numa cidade interiorana como Cachoeira, levanta controvérsia entre jovens que se suporiam mais libertários e esclarecidos. Enfim, o caldo cada vez mais grosso de conservadorismo no Brasil ainda vai dar muito trabalho para os progressistas.

“Fora Temer” na abertura

Os corpos femininos continuaram em evidência na sessão de abertura ontem à noite. Com o indispensável “Fora Temer” ecoando no coro da plateia e até na vinheta do festival, a sessão teve oito curtas de Louise Botkay, apresentados pela curadora convidada Lis Kogan. Feitos no Haiti, no Chade, na França e no Brasil, os curtas (alguns curtíssimos) da fotógrafa Louise, ao menos esses escolhidos por Lis, têm em comum um grande interesse pela figura de mulheres e meninas, seja em perambulações por cenários intrigantes, seja em festividades e rituais ou mesmo no interior de um banho turco. O registro de situações banais busca certa transcendência através de um olhar cúmplice com as personagens (estamos na mostra Cinema com Mulheres) e procedimentos experimentais de montagem.

A abertura se espalhou pela praça em frente ao tradicional Cine Teatro Cachoeirano, com a exibição do bonito curta Kbela, de Yasmin Thainá, em que a celebração dos cabelos das mulheres negras torna-se um manifesto contra o racismo imposto ou assumido. Por fim, um show da banda Som das Binha (de mulheres, claro) e, como todos os anos, um caruru servido ao ar livre. Dali podia se ver os reflexos das luzes da fronteiriça São Félix brilhando nas águas do Rio Paraguaçu.

     

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