Sobre ENCANTADOS, A NÚMERO UM e DAPHNE
ENCANTADOS, filme de Tizuka Yamasaki que estreou esta semana, vem sendo chamado de “A Forma da Água brasileiro” por conta do amor entre a menina Zeneida e o homem-cobra anfíbio Antonio, ser encantado da mítica marajoara. Cenas decisivas do casal se passam debaixo d’água, como no final do filme de Del Toro. Mas ENCANTADOS, antes intitulado “Amazônia Caruana”, foi feito entre 2008 e 2009. Chega agora às telas depois de muitos percalços de produção e distribuição.
A história, entre a realidade e a lenda, baseia-se em livro autobiográfico da pajé Zeneida Lima, hoje com 83 anos. Vemos Zeneida ainda menina deixar Belém com a família rumo a uma fazenda na Ilha de Marajó. Lá os espíritos da floresta vão fazer aflorar em Zeneida o destino de ser pajé. Institui-se um duelo entre o racionalismo dos pais e os apelos mágicos da natureza, cujas leis Zeneida começa a desafiar.
Se o clássico “Ele, o Boto”, de Walter Lima Jr., centrava o foco na figura masculina e seus poderes de sedução, ENCANTADOS tem o homem-cobra Antonio apenas como elemento detonador do que se passa com Zeneida. A ascendência indígena e a predestinação da garota são mais fortes que todos os conselhos de prudência e a brutalidade dos homens “normais”.
Tizuka Yamasaki lança mão de sua habilidade cênica, mas também da sua tendência para o grandiloquente. O filme perde um pouco do poder de sugestão por conta do excesso de ruídos (naturais e sobrenaturais) e de música reiterativa, além da falta de sutileza de algumas atuações do elenco global. Grita-se muito para imprimir a rudeza do ambiente e a sensação de perigo em torno de Zeneida. Os filtros soft dos flashbacks e algumas metáforas óbvias – como a pororoca para simbolizar o tesão do casal – dão um toque kitsch à fábula.
Entre as virtudes do longa estão as locações amazônicas fascinantes e a revelação de uma mitologia cabocla pouco conhecida, a tradição caruana. Esta compreende desde uma narrativa da criação do mundo e do povo Auí até o surgimento dos seres da água, encarregados de auxiliar os seres da terra e transmitir os poderes da cura. ENCANTADOS resume essa lenda com um olho na plateia adolescente e outro no público de televisão.
O sucesso no mundo corporativo era coisa de homens em comédias dos anos 1960, a exemplo de “Como Vencer na Vida sem Fazer Força”. Na década de 1980, as mulheres começavam a entrar na luta pela porta dos fundos, como em “Uma Secretária de Futuro”, de Mike Nichols. Hoje em dia, elas assumem de vez o comando em títulos como “Toni Erdmann” e este A NÚMERO UM, ambos escritos e dirigidos por mulheres.
Tonie Marshall, única mulher já premiada com o César de melhor direção (por “Instituto de Beleza Vênus”), conta aqui as batalhas de uma executiva francesa para conquistar a presidência de uma gigante multinacional. Emmanuelle (Emmanuelle Devos) quer chegar lá sem compactuar com o machismo reinante no meio, nem com o militarismo de um clube de empresárias feministas que lança sua candidatura como um trunfo. “Estou cansada de jogar a carta de ser mulher”, diz ela em dado momento.
Obviamente, Emmanuelle terá que enfrentar ameaças, chantagens, blefes, misoginia, paternalismo, tentativas de assédio, guerra de dossiês e até a oposição do pai e do marido. Terá, principalmente, que colocar em xeque alguns de seus princípios.
Tonie Marshall é crítica em relação a todos os lados em jogo, basta ver a relação mantida por uma executiva empoderadíssima com um colega podre de empáfia masculina. A diretora só não é crítica no trato com a sua própria escrita cinematográfica. A NÚMERO UM é aquele tipo de filme que, em lugar de tirar sua pauta da história que conta, faz o inverso: tenta extrair história de uma pauta pré-concebida. Assim, ficamos com uma série de esquetes armados para discutir cada tópico, separados por uma infinidade de tomadas dos imensos prédios da área parisiense de La Defense. Para quem curte a aridez do business, pode ser um negócio da China. Para os demais, resta pouco além da competência e da elegância de Emmanuelle Devos.
Perdoem-me a franqueza, mas depois de “Lady Bird” e DAPHNE, estou convencido de que existe um novo subgênero no cinema: o girl embromation. Longa de estreia do escocês Peter Mackie Burns, escrito por Nico Mensinga a partir de um curta seu com a mesma atriz Emily Beecham, DAPHNE perambula com sua protagonista por uma vida desregrada no bairro multiétnico de Elephant and Castle, em Londres.
Não sabemos muito sobre ela além de que o patrão do restaurante é casado e arrasta a asa para ela; que transa com parceiros improvisados em noitadas; que pega pesado no pó e nas leituras de Žižek. Ah, sim, para não destoar do subgênero, ela discute muito com a mãe naquela falta de gentileza típica da classe média baixa britânica. Daphne se caracteriza por dizer alguma coisa e logo em seguida se desdizer; fazer alguma coisa para rapidamente desfazer. Não vê sentido nem importância em nada, nem em si mesma. Para mostrar que, aos 31 anos, ela está perdida na vida, o diretor a filma bêbada como um zumbi no meio da rua. Pelo menos para mim, foi dificil encontrar alguma conexão emocional ou dramática com personagem tão desconectada de tudo e de todos.
O lance crucial para sua mudança é o testemunho de um latrocínio numa loja de conveniência. Depois disso, um terapeuta lhe dará a chave para um futuro mais consequente: “as ações importam mais que as emoções”. Agora vai! Essa poderia ser também a chave para encontrarmos um prazer mínimo em acompanhar as peripécias de Daphne se elas não fossem tão vazias e tediosas. Emily Beecham tem o physique du rôle adequado, mas Daphne, quando finalmente decola, não logra se afastar muito do chão.
Engraçado, achei que seu comentário sobre Daphne (não vi o filme) se aplicaria como uma luva ao “Projeto Florida”, e me surpreendeu que vc não tenha feito essa mesma avaliação nesse caso!
Caramba! Não vejo qualquer proximidade entre os dois filmes, mas achei engraçada essa sua colocação e vou reler as duas resenhas pensando no filme trocado pra ver se funciona 🙂