A Índia sem enfeites

TRIBUNAL e O DISCÍPULO na Netflix

É uma pena que o cinema da Índia seja comumente associado aos blockbusters de Bollywood, alguns dos quais são realmente muito bons. Mas existe um cinema indiano que foge completamente à receita comédia-ação-música-melodrama. Desde os venerandos Satyajit Ray e Mrinal Sen até contemporâneos como Anand Gandhi e Lijo Jose Pellissery, a Índia tem uma forte tradição de filmes políticos e mais conectados à realidade do país.

A Netflix me fez descobrir agora mais um desses nomes, o de Chaitanya Tamhane, que aos 34 anos já realizou dois longas celebrados em festivais internacionais e detentores de vários prêmios no de Veneza. O estilo do rapaz é sóbrio, a encenação é precisa ao nível dos menores detalhes, e seus argumentos originais dizem muito sobre o espírito e as práticas da Índia.

Em 2014, Tamhane surpreendeu crítica e júris com Tribunal (Court), um drama judiciário que extrapolava os salões de audiências. No filme, a intolerância política preside o julgamento de um veterano compositor e ativista acusado de ter incitado um operário ao suicídio com uma música de protesto. A acusação absurda é conduzida por uma promotora que o filme revela ser uma simples dona de casa de classe média interessada em mandar para a prisão os que ela considera prejudiciais à ordem e à soberania da Índia.

O advogado de defesa, jovem culto, bem intencionado e em conflito com os pais, faz o que pode contra uma estrutura viciada que protela os processos a perder de vista. O juiz, por sua vez, é caracterizado como um homem apegado a esoterismos bem distantes da racionalidade do Direito.

Tribunal é o cartão de apresentação de um diretor extremamente minucioso no naturalismo com que concebe suas cenas, sejam as coletivas, sejam as mais íntimas. Exemplar disso é uma sequência, já no último ato, em que a câmera, impassível no fundo da sala, testemunha a audiência até o melancólico final, com a prosaica despedida dos funcionários e o apagar das luzes. Ou aquela em que uma palestra é interrompida para a instalação de um ventilador. Para Chaitanya Tamhane, não basta a ação, mas é preciso mostrar aquilo que a cerca e, por contraste, plasma todo um modo de vida.

A música parece ser uma marca do seu cinema, aqui representada pelas apresentações do poeta-réu. Os ouvidos brasileiros são brindados com uma interpretação de Carinhoso, em português, numa cena de bar. Já O Discípulo (The Disciple), realizado em 2020, é um filme para quem gosta de Música. De Música clássica. Música clássica indiana, o que não combina com ouvidos impacientes. Embora possua uma tênue linha narrativa, o filme se compõe de uma sucessão de performances, aulas e ensaios de ragas serpenteantes cantadas sem letra.

O jovem Sharad empenha-se seriamente no autoaperfeiçoamento como cantor de ragas em Mumbai, seguindo as lições do pai, do seu guru e de uma mítica cantora chamada Maai, de quem só ele possui gravações. O rapaz renuncia a bons empregos, namoro e família para devotar-se exclusivamente à busca da perfeição. Naquele tipo de música, a técnica é só um caminho para se alcançar uma ascese espiritual, uma Verdade interior. Para quem segue a tradição, a música clássica hindustani se opõe a tudo o que possa ser tido como vulgar, até mesmo o jazz.

Ao contrário de tantas histórias de sucesso, a de Sharad é de uma dura confrontação com suas limitações. Confrontação também com verdades que ele não gostaria de ouvir. Sharad é vítima do seu rigor na busca de uma espiritualidade que talvez lhe falte – o que soa no filme como um desafio aos modelos edificantes que abarrotam o cinema popular indiano.

Outra qualidade de O Discípulo é a direção austera de Tamhane, sem muitas variações de montagem, o que confere uma legitimidade claramente documental, principalmente nas cenas de música. Isso é incrementado ainda pelas atuações do músico Aditya Modak no papel central e do célebre músico e tecnocrata Arun Dravid como o guru por quem Sharad nutre uma devoção filial.

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