Sobre ALÉM DAS PALAVRAS e JOAQUIM
Diante de ALÉM DAS PALAVRAS (A Quiet Passion), foi particularmente reconfortante ver Terence Davies, um dos meus cineastas favoritos, voltar à plena forma depois de alguns trabalhos menores como “Amor Profundo” e “A Canção do Pôr do Sol”. A poeta americana Emily Dickinson, afinal, é uma personagem daviesiana, comprimida entre um profundo desejo de liberdade e as amarras de uma personalidade que não lhe permite ser livre. Como as sombrias criaturas dos primeiros filmes do diretor, Emily sublima na arte o que lhe fica interditado na vida.
Para caracterizar esse processo, Davies transforma as pessoas em efígies, como se mais pertencessem a um álbum de fotos do que ao mundo concreto. É justamente através de um morphing fotográfico que vemos Emily passar da juventude (Emma Bell) à idade madura (Cynthia Nixon, em atuação deslumbrante). Entre uma e outra fase, uma estranha química se dá no temperamento da poeta. Quando jovem, ela se rebelava contra os ditames piedosos da formação católica e o destino de um casamento conservador. Mais tarde, solteirona e reclusa, frustrada no reconhecimento de seu valor literário e na paixão por um pastor casado, e ainda fustigada por uma insuficiência renal crônica, Emily se torna uma mulher amarga, quase o oposto dos seus antigos ideais libertários.
Um dado curioso é que Davies absorve a dedução de um biógrafo, nunca devidamente confirmada, de que Emily era epiléptica.
Uma pequena constelação de coadjuvantes abre espaço para diálogos de alto requinte literário e performances não menos arrebatadoras. Jennifer Ehle e Duncan Duff como os irmãos Vinnie e Austin Dickinson, Catherine Bailey como a radiante amiga Vryling Buffam, Keith Carradine como o patriarca protestante (“o que acreditava”) e Joanna Bacon como a mãe melancólica (“a que amava”) gravitam em torno de Emily. De alguma forma, representam as forças opostas que se digladiam dentro dela.
Os poemas, pontuando o filme como uma espécie de comentário, se somam às composições visuais baseadas na pintura clássica americana e ao rico tecido musical para forjar a magnífica estilização do filme. É nesse tipo de superação do real pelas potências da arte que tanto Emily Dickinson quanto Terence Davies construíram suas respectivas obras. Cada uma a seu jeito, são retratos profundos e poéticos de gente solitária, introspectiva, assim como os próprios autores.
A primeira cena de JOAQUIM lança a perspectiva póstuma de um personagem amargurado com o seu destino: “Por que só eu fui decapitado?”. O filme de Marcelo Gomes se propõe responder a essa pergunta, mostrando quem era o alferes José Joaquim antes de entrar para a Inconfidência e se transformar no herói Tiradentes.
Nessa biografia de primórdios algo romantizada, Joaquim era um militar relativamente pobre, dono de um escravo e amante de outra, às voltas com os próprios piolhos e rudimentares extrações de dentes alheios. Seu ofício principal era caçar escravos que ousassem se apossar do ouro encontrado em vez de entregá-lo à Coroa portuguesa. Ávido por ouro para comprar a patente de tenente, ele garimpa à exaustão no “sertão proibido”. Ao fim desse processo, estará pronto para ser catequizado por Claudio Manuel da Costa na cartilha da sublevação.
Temos, então, uma típica narrativa de conscientização a partir mais de frustrações pessoais que de discernimento político, mais de cooptação pela burguesia que de convicção popular. Os grandes olhos arregalados de Julio Machado expressam as contínuas descobertas que ele faz, embora o ator não tenha conseguido internalizar as maneiras de um homem do século XVIII. De qualquer forma, o casting, as locações na Chapada Diamantina, a direção de arte de Marcos Pedroso e a fotografia de Pierre de Kerchove nos colocam muito próximos do que teria sido a vida na época.
A presença subalterna de índios e negros, a revolta dos quilombolas, a arrogância portuguesa e o senso de oportunismo do próprio Tiradentes (a cena final diz muito sobre isso) são observações que enriquecem o painel para além dos chavões históricos habituais. Fosse um pouco mais intenso e menos expositivo, JOAQUIM imprimiria ainda melhor sua radiografia do Brasil colônia.
Senti falta na crítica de um comentário ou observação sobre a coincidência de, na mesma semana, estarem em cartaz dois filmes que se referem às preferências dos personagens sobre os poemas da poeta. São “Quem é Primavera das Neves” (só exibido no festival É tudo Verdade) e Paterson.
Tem toda razão, Marialva. Tinha percebido essa coincidência mas acabei não me referindo a ela. Mas você o fez, e está bem feito.