Antes de se chamar LAMPARINA DA AURORA, o terceiro longa de Frederico Machado carregava o título de trabalho de “O Tempo Envelhece Depressa”, como no livro de Antonio Tabucchi. Há, de fato, desde a primeira cena, uma atmosfera terminal dominando o filme. A velha mãe larga o crochê e se deita sobre o velho pai, suado e aparentemente moribundo. Numa bacia ao lado da cama, a goteira subitamente se tinge de sangue.
Em poucos minutos, o autor já nos situa plenamente dentro do seu universo: a família, a sensualidade deslocada do seu lugar habitual, os líquidos corporais, os silêncios e as sombras do mistério. Pouco depois surge o outro elemento ainda mais característico, que são os poemas do seu pai, Nauro Machado. “Como um bofete na cara do morto, como o sangue, o passado me acompanha”.
A memória pode estar me traindo, mas quero crer que LAMPARINA DA AURORA é o filme mais noturno de Machado. O mais soturno. Mesmo nas cenas à luz do sol, é como se acompanhássemos a deambulação de sonâmbulos. A velha mãe e seu olhar intenso para o cheio e o vazio. O velho pai e seu olhar mortiço para dentro de si mesmo. E de repente o filho, aquele que surge com o corpo já sujo do sangue e da lama que derramará sobre os pais em possíveis sonhos futuros. O tempo é como uma massa que se comprime com a força das mãos, fazendo com que passado, presente, futuro e delírio se misturem. “Meus mortos é que estão nascendo”, recita Nauro Machado. Poesia repleta de eternidade.
Dessa forma, a morte se coloca como algo não definitivo, pois se “desmorre” com a naturalidade de uma fábula – assim como a bacia de sangue, no plano seguinte, só tem água pura. E quando é a vez de o filho pendurar o pescoço numa corda, o verso canta o mote crucial: “Nós nos suicidamos para resistir às fúrias do inferno.”
As pulsões de suicídio, parricídio, matricídio e incesto se juntam a esparsas referências religiosas e à sensorialidade da natureza para comporem o intrigante quebra-cabeça psicológico e metafísico do filme. Mais que em O Exércício do Caos e O Signo das Tetas, Machado investe nas lacunas e nos subentendidos, nem sempre ao alcance de uma rápida decodificação. A muda angústia dos personagens não oferece transparência. A incomunicabilidade entre eles (não há qualquer diálogo no filme) parece se transferir para o espectador, que fica à mercê de suas próprias interpretações para completar os sentidos do filme. Esse é um risco que o diretor assume em ritmo crescente a cada novo trabalho.
Trata-se de um cinema exigente, que em muitos aspectos só se compara, no Brasil, ao de Eduardo Nunes e ao Lavoura Arcaica, de Luiz Fernando Carvalho. Mas Frederico Machado adota um grau de indeterminação ainda maior que essa média. LAMPARINA DA AURORA é para ser visto menos como uma narrativa e mais como uma escultura. Uma peça cinzelada com as variações de luz, as formas filmadas em aguda definição, as minuciosas composições de quadro, as prestidigitações do foco e a suíte de ruídos, gotejamentos, músicas e imantações sonoras que convocam o gênero do horror.
Nesse filme-noite de horas emparedadas e cadáveres antecipados, a luz das lamparinas, das velas e das fogueiras não chega a romper a escuridão. Apenas deixa entrever o apocalipse de uma família arquetípica. “Do nascimento à morte, o equívoco é de todos”.
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