Miguel foi prisioneiro político durante a ditadura. Sua amada Maria Eugênia esteve presa com ele, mas depois exilou-se na França. Sem mais notícias um do outro, refizeram sua vida amorosa. Miguel casou-se com Lúcia, uma amiga comum. Eis que 43 anos depois, enquanto o casal comemora sua longeva felicidade com o filho e a neta, Maria Eugênia reaparece com uma revelação que vai alterar profundamente essa composição afetiva. AMORES DE CHUMBO, em cartaz no Reserva Cultural de Niterói, coloca o passado em perspectiva e investiga os limites do ressentimento e do perdão.
O projeto inicial da diretora pernambucana Tuca Siqueira era um filme de época sobre a vida dos militantes. Ela é filha do político Luciano Siqueira e da militante Luci Siqueira, ambos presos e torturados no regime militar, e já realizou dois documentários sobre ex-presos políticos na faixa etária dos protagonistas de AMORES DE CHUMBO (um deles, A Mesa Vermelha, pode ser visto aqui). Quando decidiu-se por um filme de ficção ambientado nos dias de hoje, colocou a memória como denominador comum entre o ativismo político e os descaminhos do amor.
Assim é que, nas conversas entre os personagens, são frequentes as menções tanto a Che Guevara e Pablo Neruda quanto a lembranças pessoais como a canção “Negro Amor” na voz de Gal Costa. No entanto, não se trata de um filme nostálgico ou lamuriento. Mais que a dor do que não foi, interessa àquelas pessoas o que será de agora em diante. Como tocar a vida depois de saber que tudo poderia ter sido muito diferente.
Com sua trama relativamente simples e até clássica, AMORES DE CHUMBO alcança uma ressonância maior pela maneira sóbria e intensa com que foi realizado. O elenco de larga experiência no palco, a encenação baseada em tempos distendidos e longos diálogos sem corte, assim como a expressiva alternância da câmera entre proximidade e distanciamento, conferem um forte senso de teatralidade. É extraordinária a maneira como Aderbal Freire-Filho se apropria do personagem de Miguel, um professor de Sociologia que vê sua vida ser reconfigurada a posteriori e experimenta um impasse devastador. As cenas dele com Juliana Carneiro da Cunha (Maria Eugênia) são magnetizantes pelo que transmitem da emoção daquele protocasal irrealizado. É particularmente comovente a sequência em que os dois atualizam suas memórias no interior de uma cela da antiga Casa de Detenção de Recife. Augusta Ferraz (Lúcia) e Rodrigo Riszla (o filho Ernesto) acompanham o mesmo nível de naturalidade e convicção.
Com esse trabalho, Tuca Siqueira demonstra sensibilidade especial para lidar com dramas individuais conjugados à História, um pouco como tem feito Tata Amaral em seus últimos filmes. Manter-se à margem das tendências “do momento” no cinema brasileiro, preferindo criar uma dicção singular, é outra qualidade que salta aos olhos em AMORES DE CHUMBO.