Uma família do baralho

Confesso que não esperava muito de CANASTRA SUJA, uma vez que havia apreciado bem pouco o filme anterior de Caio Soh, Por Trás do Céu (2015), fábula de realismo fantástico passada no sertão nordestino. Mas eis que me surpreendo com um dos filmes brasileiros mais instigantes desta safra (embora realizado em 2016). Um retrato de família onde tudo é tão plausível quanto estarrecedor, tão verista quanto surpreendente.

Numa casa de classe média baixa em subúrbio do Rio, o pai (Marco Ricca) luta contra o alcoolismo, que o torna agressivo em casa, e contra uma acusação de roubo feita a seu filho (Pedro Nercessian). A mulher (Adriana Esteves) se ocupa de cuidar da filha autista (Cacá Ottoni), mas tem uma vida secreta muito oposta a sua imagem “oficial”. A filha mais velha (Bianca Bin) manipula dois homens em torno dos seus interesses, sendo que um deles (David Júnior) se relaciona em vários níveis com todos os membros da família. Aos poucos, como as cartas de um baralho, essas figuras vão revelando sua face oculta e desorganizando as expectativas – nossas e deles próprios. Uma rede de ocultações e equívocos é armada milimetricamente, sem furos nem soluções baratas.

Do realismo mágico o diretor passou para o realismo doméstico mais cru. Já li opiniões que acusam o filme de ser apelativo e até mesmo preconceituoso em relação a um personagem afrodescendente. Não posso concordar, dada a convicção da dramaturgia e a ética comprometida de quase todos os personagens. De alguma maneira, são os defeitos e a violência daquela família que a mantêm unida apesar de todos os percalços. A aparente contradição se justifica perante todas as contradições pessoais envolvidas.

A direção é impecável, com diálogos verazes travados por um elenco em estado de graça. A câmera de Azul Serra monta as cenas dentro do plano, em tomadas longas e ágeis que sustentam o naturalismo exacerbado da encenação. Enquanto via o filme, eu não continha o pasmo nem a impressão de ser arrastado por um labirinto dramático a que não podia resistir.

Mas o que de fato coloca CANASTRA SUJA num patamar superior é a aguda observação da vida numa família como tantas que existem por aí. E a coragem de colocar essa observação na tela sem filtros de moral e sem rodeios teóricos. Pensar em Nelson Rodrigues, Eugene O’Neil e Tennessee Williams não é descabido diante desse filme espantoso.

5 comentários sobre “Uma família do baralho

  1. Pingback: Meus filmes mais queridos em 2018 | carmattos

  2. maravilha! confesso que não me interessei, até ver a crítica. Lá vou eu mais uma vez, “seu” Carlinhos…

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