ROMA
Para nós, brasileiros, que vimos recentemente Casa Grande, Que Horas Ela Volta? e o documentário Doméstica, sem falar no episódio de Walter Salles e Daniela Thomas em Paris, Eu te Amo, ROMA talvez não traga grandes novidades quanto às complexidades e ambiguidades da relação entre empregadas domésticas e patrões. O filme de Alfonso Cuarón, vencedor do Festival de Veneza e lançado diretamente na Netflix, impressiona sobretudo pela excelência da produção, da mise-en-scène e da fotografia em preto e branco, esta também a cargo de Cuarón.
É praxe nesses filmes mostrar um tanto da vida dos patrões pela perspectiva da empregada. Assim, acompanhamos por cerca de um ano uma família da alta classe média do bairro de Roma, na Cidade do México, entre 1970 e 1971. Era ainda o longo período de governo autoritário do PRI e suas milícias que massacravam estudantes.
O mote clássico da ausência do pai é duplicado: os donos da casa estão vivendo um doloroso processo de separação, ao mesmo tempo em que Cleo, a empregada de origem indígena, descobre-se grávida de um homem que não quer assumir o filho. A apresentação do pai patrão é um primor de narrativa enviesada, com os planos de detalhe do marido tentando enfiar seu Galaxy (uma “banheira”, como se dizia antigamente) na garagem estreita da casa. Já o namorado de Cleo aparece exibindo-se para ela numa demonstração de artes marciais que vai ecoar com grande perversidade mais adiante.
Na casa de Roma, a separação de classes determina a sobrecarga de trabalho para Cleo, das primeiras horas da manhã a altas horas da noite. Ela é não só um misto de faxineira e babá, mas também o bode expiatório para as frustrações da patroa. Por outro lado, como de hábito, a relação de afeto com as crianças, a sincera disposição da patroa para ajudá-la e o reconhecimento pelo seu papel na família criam laços pessoais verdadeiros. O que, porém, não impede que Cleo seja mantida no lugar de servidão.
Cleo é uma imagem de humildade e dedicação, quase um anjo que se realiza através dos outros. A cineasta Gabriela Amaral Almeida a comparou à Macabéa de Clarice Lispector e Suzana Amaral. Perdido seu vínculo com a distante cidade natal, Cleo vive numa espécie de limbo entre o afeto alheio e a ausência de ilusões. O trabalho parece ser a única coisa a defini-la, mas ali também está a sua força. Que ela consiga a rara façanha de fazer “o 4” com as pernas de olhos fechados é sinal de um equilíbrio essencial para sua sobrevivência.
Cuarón pontua essas observações com naturalidade, sem forçar caricaturas nem fazer “discursos”. Baseou-se em lembranças de sua própria infância aos cuidados de uma babá. O filme evolui de uma crônica intimista e serena da rotina da casa para momentos de dramaticidade crescente que dominam a segunda metade. A partir de um princípio de terremoto e de um pequeno incêndio numa hacienda (quando os empregados e as crianças correm para apagar o fogo enquanto os proprietários e convidados adultos tomam champagne em meio às chamas), episódios mais graves se precipitam, criando uma tensão às vezes no limite do suportável. A câmera se comporta sempre imperturbável, desenhando lentas panorâmicas laterais que narram sem interferir, descrevem sem comentar.
Algumas qualidades extraordinárias do filme correm o risco de se perderem numa exibição em tela pequena e com som precário. Tanto nas sequências de cotidiano doméstico quanto nas externas exuberantes, Cuarón espalha detalhes curiosos no espaço cênico e explora a horizontalidade do 65mm digital, quase o correspondente ao 70mm cinematográfico. Na banda sonora, é permanente a invasão de ruídos, músicas e falas pelas margens do quadro, razão pela qual um som espacializado é fundamental para a imersão do espectador.
Posso estar delirando, mas vi ressonâncias de Fellini na sequência do treinamento coletivo de artes marciais e no engarrafamento que me remeteu à abertura de Oito e Meio. Além do título, é claro. Mas a citação mais evidente é a de Cuarón ao seu próprio Gravidade, através de um trecho de Sem Rumo no Espaço, sucesso de 1969.
O impecável trabalho de produção não ficou isento de um erro grave de continuidade. Na sequência em que Cleo vai buscar o menino na porta do cinema, sua barriga de gestante desaparece para reaparecer pouco depois. A atriz Yalitza Aparicio, uma professora de pré-escolar escolhida por Cuarón para o papel, tem uma daquelas atuações singulares, puras e perfeitas, que talvez nunca mais se repita.
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Carlos, obrigado pelo seu belo texto. Compartilho algumas notas esparsas:
O filme é estupendo e ecoa não só Fellini como o neo-realismo italiano. Creio que a questão da etnia maia, subjugada pelos brancos há 5 séculos é um tema relevante – Cleo não pode ter filhos, não os deseja, mas cuida dos filhos brancos dos patrões aos quais devota amor. A questão da mulher oprimida naquela sociedade é também importante e se expressa no próprio título do filme cujos homens não parecem ter qualquer compromisso com a vida. Roma me remeteu a Santiago, o grande filme de João Moreira Salles. Mas também vejo Fellini, principalmente do início, na observação melancólica e acurada do dia a dia, a banda militar que passa na rua deserta, o amolador de faca, a cena do cinema quase mágica com seus luminosos, os aviões que parecem mais lentos pesados e ruidosos e que remetem a outros mundos, tudo isso faz parte de um universo nostálgico, mas ao mesmo tempo implacável e violento, onde o amor de Cleo e a sua doação generosa a leva a enfrentar o medo e a arriscar a vida (menos limpar a bosta de Borras) por aqueles que de fato ama, mas que ao mesmo tempo, a semi-escravizam, isso nos remete também a Douglas Sirk. É um filme de muitas camadas onde chama também a atenção a transformação da dona de casa, que aponta para a libertação e modernização da mulher. Apenas algumas notas esparsas…
Caro Roberto, fico agradecido por essas notas que tanto enriquecem a leitura do filme.