O ÚLTIMO TRAGO
O ÚLTIMO TRAGO, realização de 2016, é um dos filmes mais silenciosos e enigmáticos do recente cinema brasileiro. Silencioso não somente porque bem pouco se fala (o primeiro diálogo vem aos 23 minutos e os demais são bastante esparsos), mas porque se vale mesmo pouco das palavras para construir sua narrativa mítica. Os atores eventualmente dizem textos de Breton, Bataille, Murilo Mendes, Haroldo de Campos e Rui Barbosa, mas o filme articula suas ideias em outro plano, o das imagens.
São três grandes blocos unidos pelo fantasma de uma índia, que ora é uma stripper, ora uma vingadora armada. Em cada bloco, um personagem surge do nada para dominar a cena: um homem, uma cantora ruiva e uma negra saída do mar.
Percebe-se a intenção de uma alegoria política sobre personagens historicamente marginalizados e oprimidos na história do país, algo que a Mangueira expressou com clareza e valentia neste Carnaval. Mas, bem ao contrário, não é fácil apreender o sentido semioculto nos tantos mistérios espargidos pelo filme, seja no bar sertanejo onde os homens cultivam o silêncio, seja na mesa espírita que invoca a índia morta, ou ainda no crime célebre que estaria por trás do desaparecimento de três jovens revolucionárias. Fala-se em opressão, destruição e podridão, mas da boca para fora, isto é, com um distanciamento meticulosamente construído.
Os diretores Luiz Pretti, Ricardo Pretti e Pedro Diogenes usam uma linguagem flutuante que parte do road movie surrealista, envereda pela encenação brechtiana com direito a cabaré, flerta com a estética de um Edward Hopper do sertão e desemboca, em tela quadrada, num clima onírico meio lynchiano. São referências muito díspares, eu sei, mas foi o que as cenas me sugeriram.
Esse é o filme que mais radicaliza a tendência mitologizante, latente em várias produções do coletivo cearense Alumbramento, como “Estrada para Ythaca” e “Doce Amianto”. Joga uma roupagem contemporânea sobre cenário tosco e história de aspiração transcendental. Às vezes soa intrigante, às vezes parece apenas postiço. O requinte da iluminação e do engendramento dos planos do fotógrafo Ivo Lopes Araújo é talvez o maior fator de coesão de um filme que, em busca do inefável, se abriu para além do apreensível.