(Texto de Rubens Machado Jr.*, publicado na caixa de DVDs Bahia, 100 Anos de Cinema)
Forasteiros, podemos ter às vezes a impressão de que o cinema baiano traz sempre um caráter inventivo ao longo de sua história. Algo como uma inquietação própria, não só a de vanguarda, ou experimental. Se não nos enganamos, ainda quando não se pretende uma criação original, restaria disseminada pelos filmes alguma sugestão remota de jogo, em ponta de ironia, ou qualquer resíduo inquieto de expressão que não quer calar por sobre as convenções pesadas que se fizeram impor.
Ilusão de ótica? Viagem metafísica? Contágio de uma decantada verve discursiva que distingue o emblemático falar baiano? Imposição urbana da antiga capital do país, velhas persuasões da sua arquitetura barroca balizando exigências do nosso olhar? Mesmo os habitantes mais fugazes da cidade de Salvador parecem captar esse complexo feitiço. Como talvez o que veio se fixar no magnetizante Nada levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno (1981) de Miguel Rio Branco, nessa exata condição de morador pouco demorado. Nele, o bairro do Maciel nos fala de um país protelado e fascinante, violento e generoso. Uma Baixa do Sapateiro medonha e bela que tantos filmes de antes e de depois adotaram como uma coordenada inspiradora, matriz visual com uma densa experiência de tradição, base documentária de pulsações decisivas da sociedade – registros de Vito Diniz, Tuna Espinheira e tantos outros; ficções incontáveis do Pelourinho, epicentro de dores e risos, vibrações cinematográficas baianas. Reflete-se este cataclismo nas lonjuras do sertão, do litoral baiano? ‑ ou ao contrário, esse tremor seria deles um consequente reflexo tectônico? Em todo caso, domar convulsões, ou sublimá-las apenas, é algo que também acontece, basta ver a serenidade do centro histórico em Gato/Capoeira (1979), de Mario Cravo Neto; a busca plácida de harmonias na Arembepe de José Agrippino de Paula, em Céu sobre água (1978).
O certo é que o convívio de tanta diferença vai desafiar uma visão conjunta, um esforço de totalizar que ganhou no cinema pelo menos dois precoces filmes de reflexão sobre o próprio cinema baiano, o coletivo superoitista Na Bahia ninguém fica em pé (1980), de Araripe Jr., Pola Ribeiro e Edgard Navarro e, desse último, Talento demais (1994), um cineasta cuja percepção das diferenças produzira o “cult” Superoutro (1989). Este viés do diferente, aliás, já teria estruturado o magnífico surto de experimentalismo superoitista nos anos 70, precedido de pouco pelas experiências de André Luiz Oliveira, Álvaro Guimarães e José Umberto. Mas a sensibilidade das diferenças nos levaria mais longe, às origens da modernidade e do cinema experimental na vanguardista década de 50 baiana.
Já anunciam muito do que se verá mais tarde os filmes Um dia na rampa (1955-1960), de Luiz Paulino, e O pátio (1957-1959), de Glauber, como bem intuiu na época o atento crítico paraibano Wills Leal, com mínima inclinação para o primeiro. O contraponto dos dois estreantes já nos traz uma configuração lapidar de Povo e Elite, fundamento básico da imagem movente baiana. No primeiro filme, um novo escandir rítmico de imagens populares do trabalho diário em montagem singular no seu humor e riqueza de associações. No segundo, mudam atores sociais e coreografia no construir abstrato de uma tensa melancolia de mirantes tropicais privilegiados. Como numa esplanada de fortificações, podemos ali esquadrinhar o horizonte oceânico da boca da Baía de todos os Santos, por onde uma elite vislumbraria vínculos seguros com outros portos, do país e d’além-mar. Já no filme de Paulino, como num contracampo voltado para a terra do Recôncavo, em ponto de vista do mar ondulante, encontraremos a vibração do centro popular, mercados de sobrevivência e de vitalidade baiana.
* Rubens Machado Jr. é pesquisador, curador e professor titular de Teoria e História do Cinema da ECA-USP. É vice-presidente do Conselho de Orientação Artística do MIS-SP e integra a editoria das revistas Cine-Olho, Infos Brésil, Praga, Sinopse e Significação.