Documentário de invenção

(Artigo escrito em fevereiro de 2011 para a revista Filme Cultura nº 54)

Os historiadores do cinema brasileiro não terão dúvidas em apontar o primeiro fenômeno da área depois da Retomada: foi a renovação do documentário, que começou em 1997 e teve seu pique entre 2004 e 2007. A partir, sobretudo, do surgimento de Santo forte, de Eduardo Coutinho,  Socorro Nobre, de Walter Salles, e Notícias de uma guerra particular, de João Moreira Salles, o doc brasileiro conheceu um surto não somente de repercussão no meio e junto ao público, como também de inquietação formal que o colocou na linha de frente do setor audiovisual.

Sem dúvida a maior contribuição para esse momentum foi a desrepressão das subjetividades. E isso se deu tanto no foco de interesse dos filmes – pessoas vistas cada vez mais como individualidades, em vez de representantes de classes ou grupos sociais –, como no eixo de expressão dos realizadores, que se permitiram participar explicitamente do processo de documentação e, em alguns casos, até se colocarem como protagonistas de seus docs.

À explosão das subjetividades somaram-se os intercâmbios com a ficção, com a videoarte e com o experimentalismo para configurar um panorama atraente como o doc brasileiro só conheceu, em escala quantitativa infinitamente menor, na aurora do Cinema Novo. Atraente sobretudo para as novas gerações de cineastas, que ali encontraram um ambiente propício ao desejo de experimentação e à necessidade de trabalhar em regime de baixo orçamento. Ao longo dos anos 2000, o doc virou um grande laboratório de pesquisa de linguagem nos coletivos, escolas de cinema e mesmo entre diretores consagrados. Até hoje a Mostra de Cinema de Tiradentes, principal vitrine do cinema jovem no país, recebe documentários numa proporção maior que 50% no seu processo de inscrições.

Mas, afinal, como se têm manifestado essas várias tendências que proponho enfeixarmos no conceito de documentário de invenção? É o que pretendo sintetizar nos próximos parágrafos. (Convém aqui dar o crédito ao termo “cinema de invenção”, cunhado por Jairo Ferreira, que veio para sanar o caos semântico em torno das ideias de vanguarda, experimental e marginal).

O império do dispositivo

Ao mesmo tempo libertação e prisão para o documentarista, o uso de um dispositivo no lugar de um roteiro tem recriado as possibilidades da dramaturgia documental. O termo “dispositivo” é usado aqui em sua vertente francesa (dispositif), baseado em acepções de Michel Foucault e Gilles Deleuze, como um sistema de escolhas (temporais, espaciais e/ou circunstanciais) que norteiam o percurso do cineasta dentro de uma realidade e um campo de trabalho. Coutinho, quando elegeu determinada comunidade, um certo período e formas de conduta mais ou menos regulares para fazer filmes como Santo forte, Babilônia 2000, Edifício Master e O fim e princípio, estava ajudando a estabelecer o dispositivo na pauta dos documentaristas brasileiros.

Cezar Migliorin, devotado estudioso do assunto, assim definiu sinteticamente o dispositivo como estratégia narrativa: “é a introdução de linhas ativadoras em um universo escolhido”. Para exemplificar, ele analisou o doc Rua de mão dupla, deCao Guimarães (2003), em que pares de pessoas que não se conheciam foram convidadas a trocar de casa durante 24 horas e filmar a casa do outro, tentando intuir sobre a personalidade do dono. A troca e o espelhamento de impressões constituem a aventura do filme.

O doc de dispositivo traz de novo a substituição do planejamento e da retórica expositiva pelo inesperado. Coloca o realizador à mercê de suas escolhas iniciais e o obriga a lidar com resultados nem sempre controláveis. Pacific, de Marcelo Pedroso (2010), foi inteiramente realizado com filmagens de turistas em cruzeiros marítimos, coletadas depois das viagens. O próprio Migliorin é autor de um curta provocativo, Ação e dispersão (2003), em que ele se limita a exibir a maneira como gastou a verba do edital em viagens pessoais que simultaneamente compunham o seu filme-prestação de contas. Não é este o caso, mas o inferno do dispositivo começa quando se torna mero fetiche, bastando-se em sua simples exposição.

O princípio da incerteza

Caminho bastante comentado e debatido ultimamente – inclusive em artigo meu na Filme Cultura nº 50 –, a hibridez de códigos documentais e ficcionais dentro de um mesmo filme forjou para o doc novos paradigmas de recepção por parte do público. A valorização da incerteza, ou pelo menos um relaxamento nas exigências de “autenticidade” na origem das imagens documentais, tem levado documentaristas como Andrea Tonacci (Serras da desordem), Gabriel Mascaro (Avenida Brasília Formosa) e Maria Augusta Ramos (Juízo) a trabalharem, cada um a seu modo, nos interstícios entre registro e encenação.

Se não representa necessariamente uma renovação na dramaturgia do documentário, como é o caso do dispositivo, esse princípio da incerteza altera a atitude do cineasta perante seus personagens e objetos. Mas principalmente modifica a maneira como o público consome – e reage – a um tipo de cinema que, durante meio século (dos anos 1930 aos 80, pelo menos) ficou escravizado ao papel de janela ou explicador do mundo. O que se impõe agora é o doc como construção cinematográfica acima de tudo. Livre, portanto, para viajar na invenção.

A estética como ação documental

No curta Clandestinos (2001), Patrícia Moran entrevista ex-militantes contra o regime militarem Belo Horizonte. O tema ultra-explorado se reaquecia mediante uma edição de som e imagens que simulava o desnorteamento, a comunicação precária, a dissimulação de identidades  e o clima de vigilância que marcavam a vida na clandestinidade. Como esse, muitos outros docs têm pisado o terreno da inovação com os calçados de uma estética aplicada diretamente ao tema.

É comum no doc de invenção que a informação, ou parte considerável dela, seja passada pelo estilo e pelos signos de linguagem, e não pela descrição, o dado simples ou a retórica expositiva. O mundo factual não é referido retoricamente, mas emocionalmente. Trabalha-se mais com o sensorial e o rítmico do que com a explanação didática. Aboio, de Marília Rocha (2005), por exemplo, evocava essa tradição vocal dos vaqueiros através de ensaios audiovisuais na caatinga, privilegiando a beleza do movimento bruto e a tonalidade evocativa dos sons. Quando Cao Guimarães, Lucas Bambozzi e Beto Magalhães resolveram documentar profissões em extinção (O fim do sem fim, 2007), optaram por imagens de Super 8 e uma edição em que as coisas parecem mais desaparecer que ser trazidas à tela.

O doc de invenção utiliza modelos narrativos menos convencionais, toma liberdades poéticas em maior grau e adota formas subjetivas de representação. Em sua linguagem, incorpora técnicas antes mais associadas à ficção, como efeitos digitais, imagens incrustadas ou sobrepostas, alterações do ritmo natural, congelamentos, trilha sonora assumidamente não diegética, planos subjetivos, descontinuidades. Em última instância, aproxima-se tanto da ficção quanto do cinema experimental, mas destes se difere basicamente por voltar-se para objetos reais do mundo social. Essa âncora com o real é o que ainda os caracteriza como documentários.

O tratamento poético da realidade pode ser motivado pelo próprio tema ou personagem, como é o caso da evocação do poeta Waly Salomão pelo amigo Carlos Nader em Pan-cinema permanente (2009). Qualquer veleidade informativa é saborosamente sabotada pelo sopro de desarrumação que provém das atitudes de Waly. Daí resulta uma biografia experimental perfeitamente ajustada a seu objeto. Mas essa poetização do real pode, ao contrário, vir de uma escolha deliberada do realizador. Este é o caso de Joel Pizzini em 500 almas (analisado na Filme Cultura 53), que procura nos quase extintos índios guatós, bem como no acervo científico e imaginário sobre eles e os índios em geral, os elementos para a construção de uma etnopoética audiovisual.

Compilações que recriam

O documentário baseado em materiais de arquivo também conheceu um rejuvenescimento significativo na última década. Os filmes, fotos e arquivos sonoros preexistentes passaram a ser usados não apenas como evidências e ilustrações, mas como matéria-prima para jogos intertextuais, signos disponíveis para uma outra escrita radicalmente original. O exemplo mais popular dessa tendência foi Nós que aqui estamos por vós esperamos (1998), de Marcelo Masagão, inventário crítico-afetivo de verdades e mentiras sobre o século XX. Jean-Claude Bernardet foi outro que se exercitou no subgênero, com destaque para São Paulo – sinfonia e cacofonia (1995), ensaio sobre continuidades e picos de invenção no cinema paulista de várias épocas. Joel Pizzini, por sua vez, forjou em Glauces: estudo de um rosto (2001) uma espécie de atuação póstuma de Glauce Rocha ao samplear e criar novos significados com as imagens da atriz em diversos filmes.

Mas o nome mais profundamente identificado com uma renovação do olhar sobre os arquivos é sem dúvida Carlos Adriano. A partir de materiais às vezes ínfimos (poucos fotogramas, velhos discos de vinil, uma curta cena de mutoscópio), ele cria ensaios minuciosos sobre memória, perda e esquecimento. A manipulação (física e artística) de artefatos fora de uso é uma condição fundamental do seu trabalho. Em filmes como Remanescências (1997), Militância (2002) e Santos Dumont – pré-cineasta? (2010), Adriano cria elos inesperados entre os primórdios do cinema e a era da manipulação digital, sempre no pleno espírito de desbravamento experimental.

Passeios pelo bosque da arte

Pode não ser o mais radical, mas o passo mais vistoso dado pelo documentário contemporâneo no rumo da experimentação é o que o aproxima da esfera das artes visuais. Um histórico da contaminação entre docs e artes plásticas no Brasil tem que necessariamente remontar ao alvorecer dos vídeos de artistas, na década de 1970. Daí nasce uma tradição com pontos marcantes na série Rioarte Vídeo – Arte Contemporânea, trabalhos conjuntos de artistas plásticos e videoartistas, e nas experimentações de pioneiros como Arthur Omar, Miguel Rio Branco e Mário Cravo Neto (ver artigo de Rubens Machado Jr. nesta edição).

Se por um lado vigora um impulso documental nas artes plásticas – com as operações sobre fotografias, o agenciamento de matérias corporais e a inserção do documentário na pauta das Bienais, entre outras coisas –, verifica-se também o deslizamento do doc para o âmbito dos museus, galerias e instalações. Arthur Omar propôs ao espectador a experiência imersiva de uma mesquita afegã em sua instalação Dervix (2005). Kika Nicolela pediu a travestis que se recriassem à vontade, sozinhos diante de uma câmera num quarto de motel, e criou Trópico de Capricórnio (2004) para ser visto numa instalação com tela no teto. Carlos Nader desenvolveu o conceito de segredo pessoal em múltiplas plataformas de interação, que incluíam o vídeo, a performance e a instalação. O sigilo, sucessivamente reiterado, funcionava como um manifesto pelo recalcamento do teor informativo do documentário, em busca de uma expressividade mais conceitual e sensorial.

Esse contágio e essa expansão, que absorvem artistas com trânsito entre várias disciplinas, está levando o doc a pontos extremos de sustentação do seu vínculo com o real. Isso conduz inevitavelmente ao debate sobre o prazo de validade da própria distinção entre documentário, ficção e experimentação. Talvez estejamos muito próximos não exatamente de um futuro, mas de um passado que ainda soa como matriz e utopia: as vanguardas dos anos 1920, quando todos os códigos se mesclavam em nome da invenção.

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