A porta fechada

Filmes sobre os tempos da ditadura militar têm sido de dois tipos: reconstituições de época dramatizadas ou documentários de depoimentos e arquivos. Em ambos os casos, trata-se de remontar-se ao período, seja pela encenação e o flashback, seja pela reunião de informações e memórias. Em Hoje, Tata Amaral e seus corroteiristas, a partir do livro Prova Contrária, de Fernando Bonassi, encontraram uma forma original de lidar com o assunto. As duas épocas convivem num mesmo tempo/espaço, marcado pela insofismável afirmação do título.

Quando o reaparecido Luiz (Cesar Troncoso) dá as caras de repente no meio da mudança de Vera (Denise Fraga), o apartamento recém-comprado torna-se um cenário ambivalente, coisa mental, um pouco como nos velhos e bons filmes de Carlos Saura. O ambiente da clandestinidade se instala em paralelo à atmosfera prosaica da chegada dos móveis, da torneira que não para de pingar, etc. Os dois tempos psicológicos vão de alguma maneira conviver no mesmo recinto, de acordo com códigos de luz (réstias e obscuridade no “passado”, invasões de claridade no presente) e formas de enquadramento (imagens entrevistas ou closes intensos no “passado”, planos médios e diretos no presente). E ainda uma delicada intervenção de projeções que adicionam camadas ao huis-clos de Luiz e Vera. O monólogo de Denise diante de uma janela com uma dessas projeções é momento antológico da bela obra da diretora.

Com essa linguagem razoavelmente codificada, Tata nos conduz por uma trama complexa, que envolve o reconhecimento de uma culpa e a resolução íntima de uma questão pessoal que vem dos anos de chumbo e ecoa tempos depois, em 1998. Se o personagem espectral de Troncoso não seria percebido pelos sensores de presença sugeridos pela xereteira síndica do prédio, a mulher vivida por Denise Fraga tem a concretude desconcertante de uma mulher de verdade. O súbito e inesperado “retorno” ao tempo de juventude reacende não apenas as tensões da clandestinidade e a consciência de um episódio trágico, mas também uma sensualidade que talvez andasse adormecida ultimamente. Vera é uma das grandes personagens femininas do cinema brasileiro recente, e o melhor que se pode dizer do desempenho de Denise é que está à altura. Com um timing prodigioso e inflexões de enorme sutileza, ela nos joga em sucessivos abismos de imprevisibilidade e fascínio.

No Festival de Brasília – onde Hoje ganhou os prêmios de melhor filme, roteiro, atriz, direção de arte e fotografia -, Tata Amaral explicou por que  dedicou o trabalho a seu ex-companheiro de vida e de militância na Libelú, Luiz Carlos Alves de Souza (o “Sergei”), que se suicidou quando a filha de ambos, a jovem cineasta e produtora Caru Alves de Souza, tinha três meses de idade: “É um filme sobre uma pessoa que não quer se lembrar, que não quer falar, e eu mesma não tinha coragem de contar à Caru que o pai dela tinha se suicidado”. Em conversa comigo no Facebook, Tata esclareceu um pouco mais: eles militaram juntos a partir de 1976, quando todas as lideranças do período anterior (evocado no filme) haviam sido mortas ou presas ou exiladas. “Quando a Caru nasceu, três dias depois de decretada a anistia, desejamos juntos que nossa filha vivesse uma vida inteira gozando das liberdades democráticas”, conta. 

Ao contrário do que muitos vêm comentando, não vejo Hoje como um filme sobre o esquecimento da ditadura, mas sim sobre a resolução de um trauma. Lembrar não implica viver refém das lembranças. Entre o espocar do champagne e a chegada do cachorro, em meio às emoções de instalar-se na nova morada, Vera vive o seu momento de confrontação decisiva com a ditadura que ainda lhe mantinha uma porta fechada dentro de si. Para que o hoje se instaure completamente, é preciso que o ontem deixe de ser um assombro e passe a ser uma verdade plenamente assimilada. 

7 comentários sobre “A porta fechada

  1. O texto levanta questões para um importante debate. Por que o encontro entre Vera e Luis corresponderia à superação de um trauma? Por que o presente teria sido instaurado “completamente” e a verdade “plenamente” assimilada? Em termos históricos e políticos, se o filme narrasse de fato uma estória de superação e de obtenção de uma verdade plena, o que isso significaria com relação à situação atual das ações referentes à memória da ditadura no país? “Hoje” seria, na perspectiva adotada pelo texto, uma representação do fim (ainda que individual) do problema? Espero que o debate público sobre o filme seja ampliado e continuado.

    • Grato pela importante colocação, Jaime. A quem não viu o filme, alerto que o comentário a seguir contém spoilers. Acho que “Hoje” aborda uma questão política pelo viés individual, e acredito que há instâncias distintas em que o problema precisa ser resolvido. A nível pessoal, existe um dado de culpa na consciência da Vera e uma necessidade de aceitar intimamente o desaparecimento do ex-companheiro para que a vida possa seguir em frente. Na esfera política, é claro que isso não define nem soluciona nada. A verdade precisa ser reposta e os torturadores, condenados. O filme apenas não lida diretamente com essa esfera, situando-se mais como um dilema no seio da antiga militância. Isso foi o que conduziu minha interpretação.

  2. Vou correndo ver, Carlinhos. Fico curiosíssimo! Realmente são poucos os filmes sobre o período que vão além do FlaXFlu, Opressor/Oprimido. Sabemos: nessa tal de vida o buraco é mais embaixo. E, “Hoje”, pelo o que escreveu, vai lá. Grande abç

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