Fanatismo e surdez

A Sexta-feira Santa foi um dia perfeito para ver 14 ESTAÇÕES DE MARIA. Como uma paráfrase da Via Crucis de Cristo (o título original é justamente esse, “Kreuzweg”), Dieter Brüggemann e sua irmã Anna (corroteirista) contam uma parábola cruel sobre fanatismo religioso. Maria é uma adolescente criada numa família dominada pela mãe ultraconservadora e intoxicada de fundamentalismo católico. Às vésperas da Crisma, ela acha que pode oferecer sua vida a Deus em sacrifício pela saúde do irmão autista. Mas ao mesmo tempo precisa responder aos primeiros apelos hormonais e à curiosidade por um mundo “normal” a que ela nunca teve acesso. Nesse dilema, será impulsionada pelo medo, a culpa e um desejo patológico de santidade. “Kreuzweg” faria um bom programa duplo com o polonês “Ida”, que lida com assunto semelhante fora do âmbito da intolerância. Como “Ida”, o que mais distingue este filme alemão é a excelência de sua concepção cênica. A cada estação da Via Crucis corresponde um plano-sequência longo e quase sempre em câmera fixa, no qual a ação se desenrola com extrema precisão. Tal é a justeza das atuações e do tempo das cenas que eu logo me senti completamente absorvido, como se assistisse a um documentário de observação. Esse estilo seco, implacável, redobra o efeito do argumento: mostrar como a obsessão do controle, a ambição mística e a psicose norteiam a ética de um grupo submetido à exaltação desmedida da fé.


Coincidentemente, ando vendo muitos filmes sobre portadores de deficiência: cegueira, surdez, Alzheimer. Por exemplo, encarei recentemente o ucraniano PLEMYA (A GANGUE), que passou na Semana da Crítica de Cannes e na Mostra de SP 2014. O filme é interpretado somente por atores não profissionais surdos se expressando na linguagem de sinais ucraniana, sem recorrer a qualquer signo verbal nem legenda. Não há nem mesmo trilha sonora, sendo os ruídos de ambiente reduzidos ao mínimo. Assim somos colocados numa experiência imersiva impressionante. Se no início de cada cena, nos sentimos um pouco perdidos, logo somos socorridos pela lógica do filme mudo, baseada no encadeamento de espaços e de ações físicas. Mesmo a típica agitação gestual e corporal dos surdos colabora para que o ritmo se assemelhe ao do cinema silencioso. A história não podia ser mais soturna e brutal. Trata de um jovem se iniciando nos rituais de uma gangue num internato para surdos. Envolve bullying, extorsões, roubos, mercado negro, proxenetismo e tráfico internacional de prostitutas. O ambiente da escola, a distância fria da câmera e a escalada de violências sugerem às vezes um cruzamento calado de “Laranja Mecânica” com “Elefante”. Depois de se integrar ao grupo, o rapaz comete o erro de se apaixonar por uma das moças prostituídas por eles. Daí em diante, vai ter lugar uma espiral de atrocidades que inclui um aborto clandestino encenado em minúcias e um uso letal de mesinhas de cabeceira (não resisto a lembrar da expressão “criado-mudo”). Em sua radicalidade e notável domínio da expressão, PLEMYA é não apenas um exemplo de cinema corajoso, mas também o retrato de um país em estado de degradação

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