Trainspotting + Teatro-doc

A maior surpresa de T2 TRAINSPOTTING vem antes mesmo de o filme começar. É saber que aqueles quatro malucos drogados, fucking loosers, autodestrutivos do cacete sobreviveram por 20 anos. Mark (Ewan McGregor) até virou careta, e em Amsterdã! Os outros continuam como os deixamos em Edinburgo, 1996, só que com menos cabelo e um pouco mais de barriga. O tempo passou para tudo no mundo, menos para eles.

O tirânico Franco (Robert Carlyle) ainda está amargando a cadeia. Sick Boy, agora atendendo por Simon (Jonny Lee Miller), não largou os pequenos crimes e trocou a heroína por cocaína. Spud (Ewen Bremner), o mais inofensivo e disléxico, segue sendo inofensivo e disléxico. Danny Boyle, por sua vez, mantém o mesmo pique de uma narrativa anfetamínica, calcada em brilhantes metáforas cenográficas, diálogos na borda do hip hop e trilha sonora arrebatadora.

Diante do quarteto está o novo mundo da virtualidade: mensagens instantâneas, emoções empacotadas, empreendimentos abstratos e ofícios incompreensíveis como “gestão hoteleira”. Não há mais tempo para atualizar o lema “Escolha a vida”, que norteava Mark no filme anterior. A maturidade chegou e os pegou de surpresa. Mark agora divide a narração com outras vozes, especialmente a de Spud, que se descobre escritor.

Enquanto “Trainspotting” se limitava a fazer a crônica das trips dos caras, num filme icônico sobre o desbunde juvenil britânico dos anos 1980, T2 faz um retrato amargo do que um dia pareceu uma amizade. Simon e Franco querem se vingar da pernada que Mark lhes passou na sequência final do primeiro filme, apossando-se do dinheiro de uma venda de drogas que seria dividido entre os quatro. Com isso, T2 ficou mais narrativo, ganhou suspense e ação, mas sem nada perder do humor violento,  imundo e irresistível. Os vasos sanitários, por exemplo, ganham novas e inusitadas utilizações.



A peça HÁ MAIS FUTURO QUE PASSADO, em cartaz só até 9 de abril no SESC-Copacabana (sextas e sábados às 19h, domingos às 18h), começa como uma peça-processo. As três atrizes, de pé atrás de uma mesa alta, explicam como fizeram sua pesquisa e como criaram o espetáculo. Logo em seguida, estamos diante de uma peça-palestra sobre nossa alienação em relação à cultura latino-americana, em especial à produção de artistas plásticas do continente. Mas pouco depois a coisa muda para a leitura, levemente dramatizada, de cartas trocadas entre várias dessas artistas do México, Colômbia, Brasil, etc.

Ou seja, estamos na seara do teatro-documentário, uma das vertentes mais ativas da cena contemporânea na América Latina e no mundo. Trata-se de espetáculos fortemente baseados em documentos (escritos, orais, audiovisuais), orientados para um discurso crítico sobre a história pública ou privada, do passado ou do presente, mas que não dispensam a invenção. HÁ MAIS FUTURO QUE PASSADO, criada coletivamente por Clarisse Zarvos, Mariana Barcelos e Daniele Avila Small, e dirigida por esta última, define-se como “um documentário de ficção”. É fascinante, então, acompanhar as flutuações entre verdade e fingimento, exposição crua e performance, circunspecção e paródia irônica, articulação de referências externas e apresentação de um ponto de vista próprio. A convicção das atrizes reflete a de toda a equipe a propósito do que é dito e mostrado – no caso, a invisibilidade da arte feminina latino-americana na historiografia do setor.

Antes de assistir à peça, participei de três tardes intensas numa oficina ministrada por Daniele Avila Small sobre teatro-documentário. Foram abordados os aspectos de verdade, dramaturgia, encenação, uso do audiovisual e de todo tipo de documento. A mim as relações com o cinema documental pareceram bastante evidentes e interessantes, em que pese a diferença básica que é o caráter presencial do teatro. Gostei particularmente de aprender que, para além do teatro-doc, existe todo um espectro chamado de “teatro do real”, que inclui a peça-palestra, a peça-processo, o biodrama, a performance autobiográfica, o teatro-tribunal e o verbatim, entre outras possibilidades. Foi como abrir uma porta para uma cidade a explorar.

2 comentários sobre “Trainspotting + Teatro-doc

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