O documentário de Betse de Paula passa sábado no Festival CineMúsica, em Conservatória (RJ).
Quem se põe a conversar com Alice Gonzaga sabe que não chegará a outro compromisso antes das três horas seguintes. A herdeira da Cinédia, detentora de boa parcela da memória do cinema brasileiro, é um jorro ininterrupto de histórias, lembranças e opiniões apaixonadas. Difícil fazê-la parar de falar, a não ser com uma espécie de corte cinematográfico. Por isso a maior façanha de Betse de Paula no documentário DESARQUIVANDO ALICE GONZAGA talvez tenha sido justamente a de editar a caudalosa e carismática “Dona Cinédia”.
Alice é vista quase sempre em meio às fileiras de arquivos de metal onde guarda e classifica fotos, revistas, recortes de jornais dos anos 1920 à atualidade, orçamentos de filmes, planos e diários de filmagens, cartas e todo tipo de documento ligado não só à Cinédia, como também ao cinema e à cultura brasileira. Uma pequena parte encontra-se digitalizada, mas o chamego da madame são mesmo a tesoura e o papel.
Para flagrar essa paixão, Betse quase não a retira do seu elemento – a não ser pelo prólogo divertidíssimo em que ela mostra como organiza a capela funerária da família em “caixinhas” e o epílogo com Alice resplandecendo de maiô e chapelão na praia de Copacabana. De resto, ela está imersa na história da Cinédia, do seu avô riquíssimo que garantiu a estabilidade financeira da família, do pai Ademar Gonzaga, da mãe Didi Vianna (“a estrela que não brilhou”) e na sua própria. Desde o seu “livro de bebê” até o papel que embrulhava o primeiro presente recebido do marido, Nagib Assaf, são os arquivos que narram a biografia de Alice. Entre suas aparições infantis em filmes da Cinédia, destacam-se os testes de câmera feitos por Edgar Brazil, sempre protagonizados por ela.
O hábito de preservar, classificar e arquivar tudo – iniciado, segundo ela, por volta dos seis anos de idade – a transformou numa memória ambulante, independente do grau de precisão. É capaz de ressaltar detalhes curiosos e reveladores sobre cada filme produzido na Cinédia, até os mais “fraquinhos”. Hoje aos 83 anos, tece comentários sobre filmes, pessoas e circunstâncias históricas da produção cinematográfica com um misto de vivacidade, humor e franqueza que faz dela uma personagem inebriante. Confessadamente maníaca e mandona, envolve a todos no seu roldão de empresária, preservadora e memorialista.
Não esconde o arrependimento por ter feito uma enorme fogueira com todos os negativos de nitrato conservados nos estúdios – depois, é claro, de transferi-los para o suporte em acetato, mais seguro. Quando uma enchente afogou o acervo de filmes nos anos 1960, ela e Hernani Heffner salvaram heroicamente grande parte do que hoje resta para contar a história da Cinédia.
O documentário de Betse de Paula não disfarça que seu objeto são a verve e os guardados de Alice. Equivale a vários dias de conversa com ela. Felizmente, editados. Entre uma e outra gaveta aberta, somos brindados com cenas raras ou clássicas de filmes, bastidores, visitas ilustres aos estúdios do “Seu Gonzaga” e cenas domésticas da família. Sorte nossa ter esse filme como uma memória da memória. E rirmos um bocado com as singularidades dessa guerreira da preservação.