CINE MARROCOS vence a competição brasileira do É Tudo Verdade
Depois de Era o Hotel Cambridge, as ocupações em São Paulo dão à luz mais um filme admirável. CINE MARROCOS sugere um cruzamento do longa de Eliane Caffé com César Deve Morrer, no qual os irmãos Taviani encenavam Julius Caesar, de Shakespeare, com um grupo de detentos numa prisão de alta segurança de Roma. O edifício do Cine Marrocos, ocupado pelo Movimento Sem Teto de São Paulo (MSTS) entre 2013 e 2016, foi palco de uma experiência fascinante.
Ricardo Calil não fez um filme sobre a ocupação pelo ponto de vista político. Não há uma defesa do movimento, mas apenas uma escuta das razões e dos projetos de alguns ocupantes. Vinte deles foram escolhidos para reencenar trechos de filmes exibidos em 1954 na imensa sala do Marrocos, durante o glamouroso I Festival Internacional de Cinema do Brasil. São cenas de Noites de Circo, de Bergman, A Grande Ilusão, de Renoir, Crepúsculo dos Deuses, de Billy Wilder, e Julius Caesar, de Mankiewicz, entre outros.
Numa estrutura auto-explicativa sobre o processo, assistimos aos laboratórios, à preparação do elenco (por Ivo Müller e Georgina Castro), aos ensaios e às cenas filmadas em glorioso preto e branco, editadas (por Jordana Berg) em articulação com as imagens dos filmes originais. O resultado é belíssimo – e não só esteticamente. O filme descobre autênticos talentos dramáticos, como Tatiane Oliveira, Valter Machado e o camaronês Joseph Ojong Akem.
Mas o que eleva CINE MARROCOS a um patamar especial são as ressonâncias entre os papéis desempenhados pelos atores e sua situação real. Um congolês que fugiu da ditadura refaz o prisioneiro Jean Gabin no filme de Renoir. Um imigrante angolano assume as vestes e o destino trágico de Júlio César. Uma ex-modelo toma o lugar de Gloria Swanson em Crepúsculo dos Deuses. Os diálogos e emoções dos filmes estrangeiros são reproduzidos com eventuais adaptações à realidade dos novos atores.
Ricardo Calil (Uma Noite em 67, Eu Sou Carlos Imperial) evita fetichizar os procedimentos técnicos, mas os deixa transparecer em momentos inspirados. Como na sequência final, em que a presença do diretor em cena, orientando Volusia Gama na famosa entrada de Gloria Swanson, replica a aparição de Erich Von Stroheim, que por sua vez evocava a de Cecil B. de Mille e, em paralelo, a de Billy Wilder.
O prédio do Marrocos foi desocupado pela polícia em outubro de 2016. Dois meses antes, o Secretário-Geral do MSTS, que aparece no filme fazendo proselitismo político para o PSDB, havia sido preso por tráfico de drogas e ligação com o PCC. A hábil desconstrução desse personagem expõe a complexidade do quadro de algumas ocupações, mas não desdoura o movimento, nem as motivações individuais dos ocupantes. O olhar de Calil é até mesmo romântico ao engajar a Saudosa Maloca de Adoniran Barbosa ao desemembramento do grupo que acabava de nos proporcionar momentos de grande empatia.
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