Mais uma perda grave na área da cultura se abateu sobre nós na última quarta-feira. O diretor, produtor e agitador cultural Marcelo Laffitte não resistiu a um enfarte fulminante, que colheu sua vida na flor dos 56 anos. A morte interrompeu seu entusiasmo na equipe de um novo filme que vinha realizando com Octávio Bezerra, seu ex-sogro, sobre o mítico restaurante ZiCartola. Marcelo deixou um filho, Caio, de oito anos, do seu casamento com a produtora Mariana Bezerra.
Ele gostava de se definir como “um realizador”. Não só de filmes, mas também de eventos, exposições, projetos, atos políticos. Por conta desse apetite plural, ajudou a fundar e presidiu a Associação Brasileira de Documentaristas, e laboriosamente construiu sua carreira em diversas funções técnicas e de produção nos sets de cinema. Como diretor, tem alguns curtas e médias dignos de figurar em antologias, como o rashomoniano Vox Populi (1997) e o documentário Um Dia, um Circo (2006). Com Mariza Leão, codirigiu outro doc memorável, Regatão, o Shopping da Selva.
O único longa de ficção, Elvis & Madona, testemunhou seu interesse por personagens de exceção, mas não marginais, e por um vínculo de comunicação com o público que fosse direto, mas não vulgar. A história de amor entre a entregadora de pizza homossexual que sonha em ser fotógrafa e o travesti que almeja seu grande show participou de mais de 50 festivais em cerca de 30 países e conquistou mais de 20 prêmios. Existia um argumento para Elvis & Madona 2, mas a decisão de filmá-lo não se consolidou.
Fomos parceiros em projetos com a marca Faróis do Cinema. De uma modesta consulta com cineastas brasileiros que eu promovia no meu blog no início desta década, ele e Mariana ergueram três mostras e um programa de entrevistas no Canal Brasil que ele dirigia e eu apresentava. Marcelo era um dínamo no trabalho e um ativista político de escol. Recentemente, seu engajamento na campanha pela libertação de Lula foi contagiante.
Em 2011, eu também o consultei para a série Faróis. Por meio da lista de seus filmes-faróis podemos traçar um perfil bem fiel do cineasta. São escolhas de alguém que, às vezes literalmente, pegava o cinema com as mãos. Com a palavra, Marcelo Laffitte:
“Minha primeira vontade foi de criar uma lista com os filmes de que mais gosto. Contudo, além de serem muitos, um filme que me agrada não é necessariamente um farol para mim. Então, esta lista é dos 10 filmes que mais mudaram a minha vida.
Tom & Jerry
Foi quando entrei pela primeira vez numa sala de cinema e me tornei um frequentador assíduo. No principal cinema da minha cidade, Volta Redonda, havia a matinê Tom & Jerry todo domingo às 10 horas. As filas eram gigantescas, com 600, 700 crianças, e o privilégio de estar lá era um poderoso instrumento de chantagem psicológica para todos os pais (“se brigar com seu irmão, não vai ver Tom & Jerry”). Pensando hoje, além de ser aplicado e viciado no prazer coletivo da sala escura, vejo que também foi um excelente exercício de linguagem cinematográfica, visto que todas as animações curtas que formavam a sessão eram mudas, permitindo que nos sentíssemos todos muito inteligentes entendendo as expressões, intenções, elipses, flashbakcs, etc. Os filmes de Charles Chaplin, Harold Lloyd e Buster Keaton que vi na TV também tiveram a mesma importância.
Meu Pé de Laranja Lima, de Aurélio Teixeira
Foi a primeira vez que chorei por um filme. Ao final, entendi que o cinema não era só diversão; ele poderia também questionar as relações humanas e familiares que começavam a nos incomodar enquanto seres pensantes (“meu pai é bravo, minha mãe é chata”).
O Homem do Sputnik, de Carlos Manga
Não vi essa comédia no cinema. Vi na TV, nas sessões da tarde da Tupi, Excelsior ou Globo, onde as chanchadas brasileiras com Grande Otelo, Ankito & Cia. disputavam território com Jerry Lewis, John Wayne e Elvis Presley. Para grande parte da minha geração, essas sessões serviram como uma espécie de vacina contra a filmebrasileirofobia que assolou o país a partir dos anos 1980.
Tommy – O Filme, de Ken Russell
Assisti umas cinco vezes. Foi a minha iniciação nos papos-cabeça pós-filme e, principalmente, no universo do rock. A partir deste filme, comecei uma pequena coleção que contava com LPs de Led Zeppelin, Deep Purple, Pink Floyd e Rick Wakeman.
Minha Namorada, de Zelito Viana e Armando Costa
No final dos anos 1970, eu andava com a turma de artistas de Volta Redonda. Um dia, eles organizaram o evento Chamada Geral, que era uma semana de noites artísticas de todas as áreas. Alguém lembrou que faltava o cinema e eu, que não sabia tocar violão, não era poeta e nem sabia interpretar, me ofereci para cuidar da sessão de cineclube. Era preciso um filme longa-metragem em 16mm, e tive meu primeiro contato com a Embrafilme. Fiz uma vaquinha com os amigos e consegui alugar Minha Namorada. Não sei não, mas acho que a minha escolha de curador foi o que o nosso dinheiro poderia pagar, e com certeza, haveria cena de mulher pelada. Peguei um ônibus, vim ao Rio, paguei em dinheiro e trouxe as latas 16mm debaixo do braço. Depois da sessão, que foi um fracasso retumbante de público com quatro pessoas, achei que queria fazer filmes.
Curtas brasileiros
Depois de ver o filme do Zelito e do Armando, passei a ir ao cinema com bem mais frequência para assistir aos curtas brasileiros que eram exibidos antes dos longas estrangeiros. Fiz meu primeiro Super 8, um documentário de oito minutos chamado Nervos de Aço, sobre trabalhadores metalúrgicos que moravam em favelas. O ano era 1979.
Bye Bye Brasil, de Carlos Diegues
Vi umas três vezes no cinema. Muitos de meus amigos também viram e tínhamos longos debates sobre o filme. E ainda tinha a canção de Chico Buarque, de quem eu era tiete declarado. Pensei: “Quando crescer, eu quero fazer um filme como esse”. Neste ano, fui estudar Sociologia na PUC do Rio.
Bete Balanço, de Lael Rodrigues
Era 1982 e eu cursava Economia na UERJ. Quase por acaso, virei assistente de produção de Tizuka Yamazaki no primeiro longa-metragem do saudoso Lael Rodrigues. O filme custou cerca de 100 mil dólares, tinha uma equipe composta de menos de 20 pessoas e fez milhões de espectadores. Antes de rodar qualquer trabalho, de institucionais ao longa, sempre pensei: “Como seria no Bete Balanço?”
Veludo Azul, de David Lynch
As situações extraordinárias e os personagens bizarros me foram apresentados por David Lynch como uma crônica da normalidade, como se o mundo fosse exatamente daquele jeito. Todos os meus trabalhos, desde Vox Populi até Elvis & Madona, têm esse ingrediente.
Conterrâneos Velhos de Guerra
Até ver esse filme, eu achava que documentário era tudo verdade. Mas os depoimentos contraditórios sobre a morte dos candangos me mostraram que documentários poderiam ser usados para brincar com a verdade. Na mesma noite em que vi o filme, escrevi o roteiro de Vox Populi.
Trabalhamos juntos, uma figura animada, simpática e agitador de todas as formas. Soube que estava preparando um manisfesto para ler no Circo Voador no encontro com Lula, Triste perda. Descanse em paz.
Caro Mattos, só para esclarecimento, Marcello Laffitte é o diretor do filme documentario Zicartola, projeto com argumento do diretor Octavio Bezerra. abraço
Sérgio, agradeço o esclarecimento. Um abraço.
Retrospecto eficaz pra quem acompanha o nosso cinema e r
reconhecermos alguém tão talentoso ceifado pela morte relativamente jovem
Caro Mattos, tudo bem?
Bela homenagem ao Laffite, que conheci pouco, mas por quem tinha muita simpatia. Fomos, inclusive, colegas da Comissão de Seleção do edital de Baixo Orçamento em 2009. Lembro que na reunião final para escolher os projetos ele não compareceu por problema de saúde.
Uma coisa me intrigou, a idade dele. No texto você diz que faleceu aos 55 anos, mas na chamada do artigo aparece: Laffitte (1948-2019), ou seja, 71 anos. Afinal, que idade tinha quando partiu?
Cordialmente.
Rogério Corrêa
Olá, Rogério, grato pelo toque. Eu tinha acabado de fazer a correção quando recebi seu alerta. O Marcelo nasceu em 1963 e tinha 56 anos. Um abraço