Para recordar “Árido Movie”

A 9ª Mostra Ecofalante de Cinema vai exibir online o novo filme de Lírio Ferreira, Acqua Movie. É uma extensão de Árido Movie, lançado em 2005. Para lembrar esse belo momento do cinema pernambucano, publico aqui dois textos que escrevi sobre o filme quando da sua estreia.

Árido Movie está no Youtube, embora numa qualidade que nem de longe honra a belíssima fotografia de Murilo Salles.

Esse filme é um barato

Numa passagem do Novo Testamento, do alto de uma montanha o demônio aponta a extensão do Universo e oferece a Cristo: “Tudo isto será Teu se te prostrares diante de mim”. Em Árido Movie, temos uma curiosa variante dessa parábola. Jonas, filho desgarrado de Lázaro, volta ao interior de Pernambuco para o enterro do pai e é confrontado pela lógica das vendetas familiares: “Você tem a ver com isso, sim senhor. Tudo isso é seu, mesmo que não queira”, impõe-lhe a voz do matriarcado.

A aproximação bíblica é apenas um dos muitos “textos” que se entrelaçam nesse suculento banquete de idéias cinematográficas. Diametralmente oposta à secura do ambiente sertanejo, a fartura de sugestões temáticas transforma o filme de Lírio Ferreira em novo jorro de criatividade e competência no cinema brasileiro recente.

O excesso aqui é benéfico porque quase nada se perde na poeira do caminho. A água e a maconha funcionam como fios condutores que ligam Jonas, o “homem do tempo” na TV de São Paulo, às relações de poder de sua família nordestina, à fertilidade ocasional do sertão, à tragédia étnica dos índios, à apropriação do tema pela arte chique paulista e à piração dos seus três amigos pelas estradas do deserto e da caatinga. Surpreende que o roteiro, escrito a oito mãos, sustente os nexos de maneira ao mesmo tempo tão clara e sutil. Porque nada aqui é dado pronto ao espectador. É preciso minimamente somar, subtrair, deduzir – enfim, dar tratos à inteligência para montar a rede que se estende entre as personagens.

A água, mãe de toda prole, está quase ausente das vistas, mas obsessivamente presente no imaginário de todos. Ela sinaliza o lado concreto da aventura, os projetos de cada um, sejam eles de trabalho, de morte ou de amor.

O fumo, pai de todo de-lírio, é o que está quase sempre à mão, respondendo não só pelo desbunde de alguns, mas pela alucinação que parece permear toda essa estranha história de náufragos a seco.

O ambiente engole o homem, cada um a sua maneira. Jonas faz seu estágio na baleia da família. O impagável trio de doidões fuma o sertão inteiro. O índio Jurandir paga o preço de desafiar a ordem coronelista. A pesquisadora Soledad faz do Nordeste o seu parangolé virtual.

Não é de Árido Movie que se deve esperar ordem e método convencionais. Nem a relativa “certeza” de uma origem documental. Tudo é construção deliberada e afinação pelo humor. A linguagem e os sotaques são goma lúdica na boca dos atores. Nem mesmo a fotografia de Murilo Salles (também produtor do filme) comunga com a tradição da “imagem sertaneja” no cinema brasileiro: é plúmbea, lunar, descorada – e magnífica.

Como um fantasma, insinua-se aqui e ali a lembrança dos road movies dementes de Oliver Stone (Assassinos por Natureza e, especialmente, Reviravolta/U-Turn), onde conviviam o gênero e seu comentário simultâneo. A pegada surrealista sugere que vejamos o filme com olhos ao mesmo tempo fascinados e incrédulos. Pois tudo tem o seu oposto. Árido Movie nos diverte, intriga e empurra para a frente.  É um filme químico. De reação imediata. E tomara que permanente.

As idades da terra

Entre a água abundante que a câmera sobrevoa na abertura e a caatinga esturricada que veremos logos depois, Árido Movie é um filme que se constrói numa estranha relação com certos mitos do cinema brasileiro. Antes de mais nada, a obra de Glauber Rocha, mito fundador do nosso cinema moderno. O sertão não virou mar e as utopias de fartura e saciedade continuam à mercê de místicos, adivinhadores de água etc. Também a prostituição e extinção progressiva dos índios e caboclos são tematizadas, assim como a permanência de um agreste arcaico, fincado em rituais familiares e vinganças de sangue.

Na paisagem desse Nordeste de entranhas expostas ao sol, podem-se ler todas as idades da Terra: a era das promessas bíblicas de paraíso, o tempo dos homens morrendo por sede ou por ódio, a idade da apropriação das fábulas populares por uma cultura urbana que usa o pretexto de “compreender os discursos” para matar sua fome de novidades.

O personagem-guia dessa “viagem” em muitos sentidos é um fantasma. Não é à-toa que está fora de foco em suas primeiras aparições. O homem do tempo subitamente se vê como homem fora do tempo, aquele onipresente via TV mas ausente das relações sociais que o forjaram. Os ecos de O Estrangeiro, de Camus, vão bem além da mera citação. Estrangeiro que é em sua própria família, Jonas não chora no funeral do pai Lázaro. Seu vazio interior vai conduzi-lo à alienação de si mesmo, a ponto de no final tornar-se ele próprio o olho da câmera. Um fantasma subjetivo.

Em certa medida, Árido Movie também é um corpo estranho. Pertence à linhagem do Cinema Novo, mas conversa com ele como se fosse um parente que não vê há muitos anos. Sente-se ainda menos à vontade no meio do cinema de consumo imediato que hoje tenta se firmar no Brasil. Assume uma curiosa e divertida “irresponsabilidade” social e comercial, enquanto procura identidade no espelho da crítica cultural, quase tocando a auto-ironia.

Que esse filme-fantasma não resulte vazio é uma façanha a reconhecer. Bem ao contrário, é obra densa de significados, ressonâncias e subtextos. Pode ser apreciada tanto por seus sentidos subterrâneos, como pela sua superfície lustrosa: os tipos humanos bem delineados e interpretados, a fotografia espetacular de Murilo Salles, o suave absurdo que a tudo envolve. Até a busca obsessiva de uma simultaneidade permanente entre os vários eixos da ação parece sublinhar o caráter alucinatório da realidade a partir de qualquer minúscula variação da nossa forma de olhar.

2 comentários sobre “Para recordar “Árido Movie”

  1. Pingback: “Acqua Movie” traz conflitos à tona na Mostra Ecofalante | carmattos

  2. to preparando a live hj dos povos indigenas, trabalho imenso, que me fez sumir do VIRTUAL uma pena, depois sera’que connsigo assistir oque perdi? amanha tem ok? se conseguir ve a live e divulga te amo Bia

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