Faz 15 anos que Lírio Ferreira lançou Árido Movie, filme que conectava heranças do Cinema Novo com a modernidade de então. Era uma história de choque de mentalidades entre um apresentador de meteorologia na TV paulista e sua família num Nordeste atravessado por velhas tradições e vendettas familiares. O tempo passou, certas coisas no Nordeste mudaram, e Acqua Movie reencontra aqueles personagens num contexto que é diferente, mas só até certo ponto.
O filme de Lírio Ferreira, já premiado no Festival do Rio pela atuação de Augusto Madeira no papel de um prefeito nordestino fascista, é uma das grandes atrações da 9ª Mostra Ecofalante de Cinema, que começa neste dia 12 inteiramente online e gratuita. Com 98 filmes de 24 países, muitos deles inéditos no Brasil, a mostra traz diversas seções temáticas, debates com diretores brasileiros e internacionais, uma masterclass da montadora Cristina Amaral e uma preciosa retrospectiva da obra de Jorge Bodanzky. Veja mais detalhes abaixo e a programação completa no site do evento.
A consciência de Cícero
O “homem do tempo” (Guilherme Weber) morre numa das primeiras cenas de Acqua Movie, sem maiores explicações a não ser a de fazer a história decolar. Estava casado com a documentarista ambientalista Duda (Alessandra Negrini), versão rediviva da videomaker Soledad (Giulia Gam) no primeiro filme. Duda interrompe uma filmagem na Amazônia para vir ao enterro do marido e é convencida pelo filho adolescente a levar as cinzas de Jonas à sua cidade natal, hoje submersa pelas obras de transposição do Rio São Francisco.
A água, muito presente nas entrelinhas imaginárias de Árido Movie, ocupa agora o proscênio. Uma das mais belas cenas de Acqua Movie se passa na nave da Igreja do Sagrado Coração, em Petrolândia (PE), parcialmente submersa há 32 anos pela construção de uma usina hidrelétrica. Lírio Ferreira traz de volta à tona a história de uma família dividida pelos conflitos que assolam o Brasil atual.
Duda, apaixonada e absorvida por seu trabalho com os indígenas, tenta recobrar o afeto do filho Cícero (Antonio Haddad), adolescente à mercê de um choque de influências. Um tanto didaticamente, o filme descreve o processo de formação da consciência de Cícero entre o Bem (a mãe progressista, os índios) e o Mal (o apelo da cultura violenta representada pelo tio prefeito e seus capatazes).
De um filme a outro, repete-se o mesmo episódio da tentação bíblica com que Jonas fora instado a vingar a morte do pai: “Tudo isso é seu, mesmo que não queira”, ouvia ele em Árido Movie. Quinze anos depois, o menino Cícero é seduzido pelo tio com um canivete – devidamente decorado com a bandeira brasileira – e o convite a entrar na dinastia de coronéis que sempre dominou Rocha, a cidade fictícia do agreste pernambucano.
Acqua Movie evolui do drama familiar para o thriller com um roteiro arriscado, sujeito a alguns furos. Estranhas elipses fazem o enredo avançar e nem tudo fica explicado a contento. Já os quesitos técnicos são impecáveis, da fotografia apuradíssima de Gustavo Hadba à montagem precisa de Vânia Debs e à trilha sonora inquietante de Antonio Pinto. Alguns acenos ao cinema nordestino são feitos pela presença de Edgard Navarro e Cláudio Assis em pequenas aparições afetivas.
O personagem Zé Elétrico, vivido por José Dumont em Árido Movie, como que reaparece encarnado em Zé Caboclo (Aury Porto). Ele, por sinal, reescreve a questão indígena que era coadjuvante em Árido Movie. As lutas por demarcação e o refúgio dos índios numa ilha indicam como o problema se agravou nos últimos anos e se tornou questão de sobrevivência nacional. Zé Caboclo duvida dos benefícios a longo prazo da transposição do Velho Chico, deixando entrever a complexidade envolvida nesses grandes projetos.
Oscilando entre o percurso afetivo de mãe e filho, e a dramatização de discussões maiores, Acqua Movie diz coisas importantes sobre o nosso presente. E semeia a esperança de que as novas gerações compreendam o perigo embutido num canivete adornado com a bandeira.
Nota: Árido Movie pode ser visto/revisto no Youtube, mas em qualidade que não honra nem de longe a fotografia deslumbrante de Murilo Salles.
Outros destaques da Mostra
Alguns filmes da 9ª Mostra Ecofalante de Cinema já foram abordados por mim. Clique nos títulos para acessar as resenhas:
Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar – A pequena China brasileira neoliberal do jeans soberbamente retratada por Marcelo Gomes.
Indianara – O perfil de uma mulher forte, objetiva e fascinante, para quem a luta sempre continua.
Amazônia S.A. – Um insight nos mecanismos que perpetuam a Amazônia como domínio de espertalhões e da gente pobre agenciada por eles. A questão é criminal e ambiental, mas também social.
Golpe Corporativo – O documentário de Fred Peabody tenta mostrar como, desde Reagan, os governos – incluindo os democratas – pavimentaram o caminho para a vitória de Donald Trump em 2016.
Entre os filmes inéditos por aqui, destacam-se Exodus, dirigido por Bahman Kiarostami, filho do mestre iraniano Abbas Kiarostami; Tomates, Molho e Wagner, de Marianna Economou, indicado da Grécia ao Oscar de melhor filme internacional; Soldados da Borracha, de Wolney Oliveira, e o novo curta de Daniela Thomas, Tuã Ingugu.
Sob a rubrica “Clássicos e Premiados” acomodam-se títulos de Aurélio Michiles, Vincent Carelli, Silvio Tendler, Hermano Penna, Ricardo Dias, Marcelo Pedroso e outros. Salta aos olhos o conjunto de oito filmes de Jorge Bodanzky, que inclui não só o hiperclássico Iracema, uma Transa Amazônica (dirigido com Orlando Senna), mas também longas pouco exibidos ultimamente, como Jari, Os Mucker e o espantoso Terceiro Milênio. Entre os trabalhos mais recentes de Bodanzky está Ruivaldo, o Homem que Salvou a Terra, de 2019.
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