A VOZ SUPREMA DO BLUES na Netflix
O título brasileiro, A Voz Suprema do Blues, sugere uma biografia laudatória da cantora pioneira Gertrude “Ma” Rainey (1886-1939). Mas o que Ma Rainey’s Black Bottom oferece é uma história trágica sobre a condição dos negros na Chicago dos anos 1920. Durante um dia de gravação num estúdio, em 1927, quatro músicos aguardam a cantora estar pronta para a performance e, enquanto isso, discutem e contam histórias dramáticas que poderiam inspirar boas letras de blues.
Uma luta pelo poder acontece em várias frentes. A temperamental e autoritária Ma Rainey vale-se de sua fama para impor exigências impertinentes sobre seu agente e o dono do estúdio, ambos brancos. O trompetista Levee veicula sua revolta contra Deus e o mundo num projeto de independência e afirmação do seu talento de compositor, o que o faz também entrar em choque com a grande dama.
A tensão que circula entre todos os personagens ecoa a segregação racial e a humilhação dos negros fora dos limites estritos da performance artística. Mas os matizes são muito diversos. A peça homônima de August Wilson, encenada na Broadway em 1984, traz criaturas complexas, caracterizadas sem qualquer paternalismo ou triunfalismo. Há tanto a resignação do pianista com as “sobras” destinadas aos “de cor”, como a arrogância catártica de Ma Rainey. Temos a servidão do trombonista sempre pronto a respeitar a autoridade e o inconformismo desarvorado do trompetista. Some-se ainda o oportunismo da jovem namorada de Ma Rainey, a quem Levee lança sua verve de conquistador.
Está montado o quadro para uma jornada tarde adentro com esses personagens se entredevorando entre os raros e breves momentos musicais. Ao fim e ao cabo, ficamos com uma visão amarga de como o racismo fazia os negros se voltarem uns contra os outros perante a indiferença e a exploração dos brancos.
O filme é dedicado a Chadwick Boseman, que deixou uma última performance exuberante como Levee antes de morrer de câncer em agosto último. O astro de Pantera Negra vinha sofrendo com a doença nos últimos quatro anos, sem deixar isso transparecer publicamente. A fragilidade física pode ser percebida por trás da garra com que ele interpreta o papel, comendo sílabas numa maneira peculiar de falar e roçando às vezes a fronteira do overacting. É candidato sério ao Oscar póstumo de melhor ator.
Menos não se pode dizer de Viola Davis como Ma Rainey, com suas inflexões carregadas de arbítrio, a postura de matrona, o colo suado e a maquiagem carregada que lhe dão um ar quase sobre-humano. O diretor George C. Wolfe se apoia na vivacidade dos diálogos e nas atuações intensas do elenco para transcender o status de teatro filmado, já que o longa se concentra em dois espaços exíguos e tem pouca ação não verbal.
Em todo caso, dissimular a origem teatral não tem sido preocupação relevante nos dois projetos produzidos por Denzel Washington a partir de peças de August Wilson (1945-2005). Há quatro anos, Denzel dirigiu e protagonizou com a mesma Viola Davis Um Limite entre Nós, drama sobre um casal de afro-americanos nos anos 1950 (leia minha resenha). A Voz Suprema do Blues não gera o mesmo envolvimento emocional que o filme anterior, mas adensa o exame daquele dramaturgo sobre as contradições de seu povo.
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