Rosa na favela: o choque da distância

GRANDE SERTÃO

Será coragem ou simples temeridade? A transposição de Grande Sertão: Veredas para uma favela me suscitou pensamentos controversos. Por um lado, é curioso imaginar a gesta de Guimarães Rosa aplicada ao contexto da guerra de facções e policiais num Brasil urbano distópico que, de alguma maneira, corresponde a um sertão conflagrado de outros tempos. A peça Orfeu da Conceição (1954) e depois o filme Orfeu do Carnaval (1959) já faziam operação semelhante: levavam o mito de Orfeu para a realidade das favelas cariocas.

O romance roseano sustenta possibilidades variadas de interpretação, e essa dos roteiristas Guel Arraes e Jorge Furtado é uma delas. Daí que Riobaldo vira Rio Baldo, um professor envolvido na guerra por amor ao amigo Diadorim. Sua atração pelo garoto que conheceu na infância, simultânea à interdição homofóbica, o transtorna. Parece coisa do diabo, se é que ele existe mesmo. E o diabo recebe corpo e esboços de chifres na figura do jagunço Hermógenes, o antagonista por excelência. Nhorinhá, a prostituta, ganha foros de mulher livre para ser bissexual, traço que escapa completamente ao original e parece estar ali apenas para cumprir uma pauta da moda.

A festa da jagunçada vira baile funk de cores e montagem alucinógenas em meio a uma favela hiperrealista cuja arquitetura brutalista lembra um Blade Runner lumpemproletário. Com frequência, Grande Sertão me pareceu aspirar a ser um Cidade de Deus lisérgico, com a verbalização das comunidades substituída pela experimentação léxica de Rosa.

A distância entre original e adaptação causa um choque que pode ser apreciado por quem se abrir à experiência. No entanto, o que vamos encontrar é problemático por trair uma certa favela-exploitation nos excessos de exasperação, violência e sangue. A montagem frenética artificializa a ação e serve para dissimular alguma possível incapacidade de realizá-la em tomadas contínuas. Em outras palavras, joga areia nos olhos do espectador.

O que não se pode negar é a qualidade do que Caio Blat faz com o texto da narração retrospectiva em primeira pessoa, muito embora não se compreenda o lugar de onde ele narra. Como aconteceu na peça e no filme de Bia Lessa, Caio domina com perfeição cada sílaba de suas falas, caracterizado como uma espécie de Antonio Conselheiro. A química do Caio “jovem” com Luísa Arraes, sua mulher na vida real, produz os melhores momentos do filme.

Guel Arraes assumiu talvez o maior risco de sua carreira. Levou o som e a fúria ao paroxismo, propondo uma leitura insólita da obra mais ambiciosa da literatura brasileira. Como cinema, só faltou um propósito maior que superasse o mero alvoroço cênico e a ênfase na selvageria.

>> Grande Sertão está nos cinemas.

4 comentários sobre “Rosa na favela: o choque da distância

  1. Gostei, é sempre interessante ousar, correr riscos…

    Acredito que a estética do filme (já visto em Mad Max, Blade Runner) tem à ver com uma estratégia de conquistar espaço junto ao público.

    Como o filme é muito verborrágico (o som do cinema estava baixo e nem sempre audível), perde-se bastante, mas verei novamente.

  2. Assisti e gostei muito. Trata das questões sociais que enfrentamos atualmente. A direção e a montagem fizeram um excelente trabalho criativo que mexe com o emocional em vários momentos. Quem gosta de cinema arroz com feijão apimentado vai detestar. Normal quando estamos diante de um trabalho cinematográfico de excelência.

  3. Prezado Carlos Alberto. Assisti ontem o GSV. Confesso que saí na metade da projeção, resisti ao máximo, porém foi impossível continuar. Acho que vc foi extremamente benevolente na sua crítica. Não me lembro de ter visto recentemente, um filme tão desastroso. A direção de atores é bisonha. Todos berram. A única cena digna de nota é o encontro de riobaldo e diadorim ainda crianças. Depois o filme vira uma sucessão de clichés que chegam a ser cômicos. O personagem do Eduardo Sterblich é uma afronta, a imitação no personagem do Heath Ledger é um pastiche. As referências chupadas de Bacurau, Cidade de Deus, Blade Runner são escandalosas. Até o grande Caio Blat fica fora do contexto no lodaçal que é o roteiro. Nada se salva. Nada.

    • Olá Alexandre, não fui tão severo assim na minha apreciação. Acho que o filme tem valores, embora muitos usados de maneira equivocada, mas ainda assim… E discordo quanto ao Caio. Ele me pareceu incrível.

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