Sobre-naturalismo tailandês

Não era minha intenção escrever sobre Tio Boonmee, que Pode Recordar suas Vidas Passadas, mas o pedido de alguns amigos queridos me trouxe até aqui. Não vou analisar o filme nem aprofundar questões, mas apenas deixar um registro rápido da impressão que o filme me causou.

Gosto de Apichatpong Weerasethakul desde 2003, quando assisti a Blissfully Yours  no Festival de Cinema Independente de Buenos Aires e, como jurado da Fipresci, cerrei fileiras em torno dele para o prêmio da crítica internacional. Blissfully Yours era o cartão de visita de um cineasta cheio de frescor e mistérios. Lidando com três jovens entre a cidade e o campo, entre a melancolia e a sensualidade, o filme introduzia muitas características do cinema de AW: narrativa em duas metades não muito interligadas; um personagem sempre vitimado por uma doença; um fundo político tênue e, principalmente, uma visão panteísta do mundo, em que homens, animais e plantas pertencem a uma mesma ordem da natureza, podendo assim intercambiar os papéis sem muitas explicações.

O tom meio renoiriano de Blissfully Yours seria sucedido por cores mais densas e tramas mais intrincadas em Doença Tropical e Síndromes e um Século, os outros longas que pude conhecer. Em cada um deles, AW acrescentava ingredientes que iam formando sua cosmogonia: o amor gay, as mutações poéticas entre homens e animais, reencarnação, realidades paralelas, vínculos inesperados entre signos budistas e práticas de uma Tailândia moderna e laica.

Esse trajeto nos ajuda a compreender melhor os aparentes enigmas e a simplicidade assumida de Tio Boonmee. Um homem com uma doença renal está se tratando numa casa no interior do país, próximo à fronteira com o Laos. Com ele estão não apenas parentes vivos, mas também chega o fantasma da mulher, além do filho que desaparecera há tempos e agora retorna com aparência não humana. Tudo acontece com bastante naturalidade, como num conto de fadas. E é assim que os filmes de AW devem ser vistos: como contos fantásticos, mas em que o sobrenatural não assume um lugar especial, e sim convive com o natural  no mesmo plano.

A belíssima sequência da princesa e do bagre funciona como um conto dentro do conto. Parece uma senha para abrir nossa percepção para as entradas múltiplas com que trabalha o diretor. AW faz convergirem as lendas tailandesas, os ecos da política sangrenta da região, a banalidade do cotidiano e as necessidades básicas do homem (amor, saúde, sobrevivência) em obras de enorme originalidade, que desafiam o convencionalismo do espectador. Não com uma experimentação estéril, mas com olhos abertos para a dualidade das coisas. O monge que se duplica na cena final apenas explicita a repartição que existe em tudo: o que somos e o que parecemos, o que fazemos e o que desejamos. Um monge e um fantasma são também seres com fome. Um homem é também um fruto da selva. Um filme é também uma maneira de falar sobre o que não se explica e, ainda assim, pode nos encantar sossegadamente.  

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