O Prêmio do Júri da Crítica (Fipresci) do 12º Mumbai International Film Festival, encerrado ontem, foi para o documentário Nargis – When Time Stopped Breathing, realizado por dois cineastas sob pseudônimo. Uma semana depois do ciclone que arrasou uma região de Myanmar (ex-Burma) em 2008, eles foram para o local desafiando a censura do governo militar contra qualquer mídia que não fosse oficial. O que colheram são imagens eloquentes e dolorosas da catástrofe ainda úmida. Imagens capazes de conectar a tragédia humana com a devastação material ao redor. O filme não tem uma cena sequer de arquivo nem qualquer retórica narrativa. Apenas um comentário eventual e meditativo dos realizadores, além das memórias ainda latejantes dos sobreviventes. De alguma maneira, lembrou-me a pureza documental de Shoah. Só assim teríamos a dimensão humana de um desastre em região extremamente fechada para o mundo.
Veja o trailer aqui:
Outros filmes que impressionam nosso júri:
Dreaming Taj Mahal, de Nirmal Chander. Um motorista de táxi paquistanês e sua família sonham com visitar a Índia, especialmente o Taj Mahal, mas seu pedido de visa é constantemente negado. O contencioso entre os dois países desde a Partição em 1947 é referido aqui pela visão de cidadãos comuns do Paquistão, que sofrem os efeitos da política e do terrorismo. Esse enfoque íntimo de uma família particularmente simpática toca a sensibilidade das pessoas nos dois lados da fronteira. O média-metragem foi nosso segundo candidato ao prêmio.
Shape of Shapeless, de Jayan Cherian. Esse diretor malaio radicado em Nova York é familiarizado com documentários experimentais. Shape of Shapeless é um perfil bastante ousado de um personagem idem: um travesti judeu que é artista burlesco, iogue e artesão. O filme exibe sem rodeios diversos processos corporais de uma criatura que desafia praticamente todas as noções de gênero, sexualidade, religião e comportamento. Foi talvez o filme mais agudo da competição internacional.
Flamenco de Raiz, de Vicente Perez Herrero. Exibido em Bombaim com um título em inglês, é talvez o melhor filme sobre flamenco que já vi. Enquanto os maravilhosos filmes de Carlos Saura, por exemplo, concentram-se no espetáculo e em grandes estrelas, esse doc vai ao encontro de figuras menos conhecidas, sobretudo o visceral cantor “El Álvaro”, que prefere ganhar a vida como varredor de rua em Málaga. Herrero quis falar das raízes populares do flamenco, da emoção legítima que turva os olhos dos ouvintes identificados com a emoção do canto, histórias de um gênero musical que nasceu como grito dos despossuídos. A montagem de falas intercaladas com passos de dança deixa clara a interação entre arte e modo de vida dos praticantes do flamenco.
Dancing With Dictators, de Hugh Piper. Perfil de um pequeno magnata da imprensa australiano que investe em jornais de países “tranquilos” como Vietnã, Camboja e Myanmar. Ross Dunkley é visto gerindo o Myanmar Times em meio ao processo das primeiras eleições no país em 20 anos. A equipe do filme trabalha clandestinamente, o tempo todo ameaçada por agentes da inteligência e próceres do governo militar que não estava nem um pouco disposto a entregar o poder a civis em 2010. Num tour de force documental de primeira ordem, Hugh Piper e seus colaboradores não perdem uma oportunidade de flagrar o que é fazer jornalismo numa ditadura implacável. Cobre as relações com a censura, o medo e os riscos da profissão, e o episódio que levou Ross Dunkley a passar 47 dias na prisão.
Prince, de Kurnal Rawat e Anand Tharaney. Uma pequena joia no cruzamento entre animação, ficção e documentário. Em seis minutos, a jornada de um táxi comum de Bombaim do nascimento à morte num mercado de carros desmontados. O curta explora a estética da “taxi-art” da cidade, remanescente dos filmes de Bollywood e da iconografia religiosa hindu. Seria meu candidato, não fosse o prêmio Fipresci um pouco sério demais para um curta-curtição.
Sobre outros filmes vou escrever num próximo artigo, dedicado a imagens da mulher indiana.
Carlinhos,
Espero que esses filmes sejam exibidos em breve no Brasil.