Arthur Omar e a segunda instância da fotografia

Em tempo de FotoRio, aproveito para trazer de volta uma matéria que publiquei em 1999, em O Estado de S. Paulo, sobre o livro O Zen e a Arte Gloriosa da Fotografia, de Arthur Omar. O livro, na verdade, foi lançado pelo CCBB-Rio e a Cosac Naify como catálogo da exposição Antropologia da Face Gloriosa. O texto abaixo está levemente adaptado. 

Para a grande maioria dos fotógrafos, uma exposição e um livro são objetivos finais de seu esforço, a plena realização. Não para Arthur Omar. Naquela ocasião, o Centro Cultural Banco do Brasil abria uma sala com os rostos colossais de sua Antropologia da Face Gloriosa, ecoando a exposição da Bienal de São Paulo e o livro homônimo lançado em 1998. Longe de parar para assistir ao próprio sucesso, Omar estava lançando mais uma obra nova ou, como ele prefere, “uma dobra” do seu trabalho. Em vez de catálogo, o evento do CCBB oferecia um livro de artista, onde as fotos da Antropologia não eram reproduzidas, mas revisitadas como objetos em si, afastadas do contexto expositivo e colocadas em situação.

Em O Zen e a Arte Gloriosa da Fotografia, os enormes closes carnavalescos aparecem nus, como não deveriam ser contemplados publicamente. Pendurados acima da banheira de revelação como grandes peixes recém-pescados, recostados como fantasmas cansados aos muros e móveis da casa do autor, dispostos sobre mesas de trabalho à espera das decisões que ainda vão lhes forjar a derradeira forma. Ou melhor, a próxima forma, já que nada é definitivo no processo de Arthur Omar. Cada parto seu é o início de uma nova gravidez. Ele explorou essa noção também em um vídeo documental sobre todo o processo, exibido durante a exposição, com o título de Infinito Contínuo.

O livro tem uma característica de making of da exposição, mas a transcende por ser, ele próprio, uma obra de grande impacto e beleza. Submete nossa percepção a um reajuste dramático, na medida em que retira da fotografia o seu tradicional caráter abstrato de retenção do instante e lhe confere uma inesperada materialidade. Fica fácil, então, compreender o aspecto escultórico que Omar atribui à fotografia quando define seu ofício como “modelagem da matéria fotográfica básica e densa, feita de grãos vivos”. Vistas como entes fotografáveis, as próprias fotos são flagradas enquanto submetidas a uma pletora de procedimentos cirúrgicos: fatiadas em folhas de teste, profanadas pelas mãos dos técnicos de revelação, corrugadas, marteladas, retocadas.

Algumas são refotografadas sob a incidência de fatores ambientais – reflexos, dissolvimento da moldura em paredes e pisos conspurcados – ou mesmo distorções de ângulo fotográfico, com o que adquirem um novo sentido e provocam um assombro imprevisto. Arthur Omar acredita que os rostos mudam de expressão ao serem novamente capturados em outros instantes que, tal como os do ato fotográfico original, também são únicos. “Eu quero mostrar com isso o aspecto inesgotável das formas e simultaneamente fazer uma meditação sobre o tempo”, afirma.

Como obra e reflexão são irmãs gêmeas no trabalho de Omar, O Zen e a Arte Gloriosa da Fotografia representa uma oportunidade inestimável de contato com o pensamento do autor, exposto numa seleção de textos e entrevistas. O próprio Omar, em conjunto com a designer gráfica Sonia Barreto, paginou o livro destacando trechos que ganham status de poesia. Não fosse pelo uso de uma tipologia pobre nos títulos dos capítulos, seria um trabalho irretocável. Nos textos, o autor analisa sua própria atitude artística com um cortejo de metáforas inspiradas, sedutoras, cuidadosamente polidas, como esta aproximação entre o violinista e o fotógrafo: “Só existem duas formas que utilizam o instrumento de trabalho contra o rosto. Uma é a arte do violino, a outra a da câmera fotográfica. Que são provavelmente instrumentos de uma intensa vibração emocional, que executamos com a ponta dos dedos”.       

Omar elabora a sua teoria particular dos títulos (“quando junto um título a uma fotografia, estou combinando uma obra com outra obra, quase como se pendurasse um quadro ao lado do outro”) e explica os motivos que o levaram a fixar-se no preto-e-branco para a série Antropologia da Face Gloriosa. Há trechos reescritos de sua longa entrevista à revista Cinemais número 10 e respostas a perguntas inéditas deste repórter por ocasião de entrevista ao Estado em 1997. Na transcrição de uma conversa gravada em vídeo pela cineasta Tata Amaral durante a exposição que fez no MIS de São Paulo em 1993, ele “explica” três fotografias à sua maneira barroca e rigorosa, metafórica mas nunca delirante.

Particularmente informativo é o texto Memórias da Luz de Segurança, transcrição de e-mail a um amigo, onde Omar narra suas primeiras incursões à obsessão fotográfica e descreve saborosamente o êxtase do fotógrafo no quarto escuro do laboratório. São esses momentos privados, de contato íntimo com o mistério fotográfico, que ele quer trazer aos olhos do público. Cintilações de tempo no curso de um processo artístico, eles próprios transformados em obra acabada, um livro de trabalho. Como os grafittis de Paulo Maia, que devolvem os rostos da Antropologia à algaravia indiscernível das ruas, Arthur Omar renova sua obra com essa volta sobre si mesma. A cobra encara o próprio rabo e vê – vemos – que é belo.

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