por Ricardo Cota
É possível pensar o inconsolável sem uma sombra de consolação?
Esta é a pergunta que “Sur L’Affaire Humaine”, publicado pelas Editions du Seuil, lança ao leitor. Escrito por Luc Dardenne, o livro, de texto límpido, fácil, porém de reflexão árdua, profunda, é uma pensata sobre o desafio humano diante da morte de Deus, anunciada por Nietszche, e o medo de morrer num mundo assombrado por essa ausência e sem consolação imaginária.
Luc, assim como o irmão, Jean-Pierre, é cineasta. Ambos compõem a dupla conhecida como “irmãos Dardenne”, de carreira profícua com títulos como Rosetta e A Criança. “Sur L’Affaire Humaine” foi escrito em 2012, logo após a realização de O Garoto da Bicicleta e durante a produção do recente, ainda inédito no Brasil, Dois Dias e Uma Noite, cujos temas ecoam no texto. Trata-se portanto de peça literária que nos desperta pensamentos filosóficos de forma direta e cinematográficos de forma indireta, complementar.
Viver a solitude mortal sem Deus, aceitá-la verdadeiramente, reconhecendo enfim nossa condição sem apelar para novos deuses ou ilusões de eternidade é, segundo Luc, o grande “affaire” humano. Qual o caminho então para preservar a graça humana, demasiada humana, de viver? Como responder a um Deus ausente a questão colocada por Kafka em seu diário de 19 de outubro de 1917: “É possível pensar qualquer coisa de inconsolável sem a sombra de uma consolação?”
Em poucas páginas de um texto límpido, enxuto, sem digressões herméticas ou citações desnecessárias, Luc Dardenne não apresenta, como se espera de um filósofo, respostas definitivas. Lança novas questões sobre o medo de morrer retomando concretamente a graça da plenitude de viver. O autor estabelece uma distinção entre o medo de morrer e o medo da morte, uma personificação da indesejada das gentes que nos afasta de nosso estado original de solidão absoluta.
“Sur L’Affaire Humaine” considera o medo de morrer uma afirmação do poder autoritário. Viver sob o seu tacão é, em si, construir uma “bolha imaginária”, uma das tantas ilusões de eternidade, em que ao não tolerarmos a nossa própria morte não toleramos a existência do outro, justamente aquele que nos lembra da nossa finitude e dos nossos limites. Destruir o outro, portanto, seja literal ou simbolicamente, é a solução que encontramos para afirmar nosso poder de driblar o medo de morrer e julgarmo-nos, ainda que de forma efêmera, eternos. Nessa linha, afirmar a graça de viver é o antídoto contra a imposição do medo de morrer num mundo sem Deus.
E como sustentar a graça da vida sem ilusões? O caminho proposto é justamente o reconhecimento do outro, através do encontro, da troca, da amizade (tudo o que não se faz no facebook, por exemplo). Nascemos e somos jogados na mais profunda das solidões, mas não podemos construir nada sozinhos. E nesse processo Dardenne encontra no contato com as crianças e na manifestação artística dois fortes elos para superar o medo de morrer. Não se trata de um amor romântico pueril pelos que chegam à vida, mas sim um contato com a lembrança que eles trazem de nossa finitude e de que, aí sim, pode haver uma palpável percepção de eternidade. Numa das mais lindas passagens do livro, o autor defende justamente a importância do papel dos adultos como educadores.
O outro caminho possível é a arte. A arte, para Luc, exprime o sofrimento humano e, ao mesmo tempo, daí sua graça, uma possibilidade de sair desse estado celebrando a alegria de estar no mundo, fazer parte dele, dividi-lo com outros, questioná-lo, superá-lo e acima de tudo VIVER. “Por esta dupla expressão da arte experimentamos nossa relação especificamente humana: relação com o outro e relação com a vida.” Que siga el baile.
Ricardo Cota
Belo texto sobre o que deve ser um belo livro. Vou reproduzir no lugar onde não se faz amizades segundo o Cota nos parênteses da frase “o caminho proposto é justamente o reconhecimento do outro, através do encontro, da troca, da amizade (tudo o que não se faz no facebook, por exemplo)”.
Acabo de começar a ler o texto A resistência de Ernesto Sabato que fala também da necessidade imperiosa do encontro com o outro… esta humanidade que vem se perdendo pelo ralo de uma forma de viver artificial, plástica, inodora e insossa. Conspiram os deuses para que eu faça esta reviravolta, escute a música que nos faz dançar e parecer loucos, pelo menos para os que (ainda) não escutam a música.