Texto feito para o catálogo da mostra “Frank Sinatra – A Voz no Cinema”, em cartaz na Cinemateca do MAM
“My Way”, o eterno hino dos autoconfiantes, fez incontáveis aparições no cinema. Duas delas me ficaram na memória por seu caráter surpreendente. Uma é a interpretação furiosa e debochada de Sid Vicious incluída em “The Great Rock ‘n’ Roll Swindle”, de Julien Temple, e recriada por Gary Oldman em “Sid & Nancy”, de Alex Cox. A letra afirmativa da versão americana virava dinamite na apropriação punk.
A outra é a do aposentado Henrique em um dos muitos momentos inesquecíveis de “Edifício Master”, de Eduardo Coutinho. Quem viu o filme não esquece jamais de Henrique relatando seu encontro com Frank Sinatra e em seguida ligando o aparelho de som para, mais uma vez, cantar em coro com seu ídolo. A sequência dura nove minutos, dos quais os três finais são ocupados pela música.
O que está em cena ali é uma síntese emocional da vida daquele homem, que partiu aos 17 anos, com a cara e a coragem, para fazer a vida nos EUA. Agora estava li, sozinho no exíguo apartamento de Copacabana, a sala presidida pela imagem de Jesus Cristo, a caixa de som apoiada numa cadeira, um castiçal e um vaso de flores desbotadas sobre a mesa. Diante da câmera, ele aceita repetir um ritual que faz a cada dois sábados. Coloca o CD de Sinatra bem alto e solta a voz: “And now, the end is near…”
Henrique canta enquanto tenta driblar a tosse e a desafinação. Vibra com os punhos cerrados a cada vez que a canção sobe de tom. Bate no peito, os olhos mareados. A gente sente até um certo medo de que ele se comova demais e tenha um troço. É como se aquela performance fosse a mais decisiva de todas, a que iria confirmar tudo o que pensava sobre si mesmo: “Eu venci à minha maneira”. Quando a música termina, ele está exausto mas feliz. Acabou de mostrar a que veio ao mundo.
Sempre que uma música surgia na conversa com seus entrevistados, Coutinho costumava pedir que cantassem. Ele sabia que, ao cantar, as pessoas se põem em cena e acabam revelando camadas ocultas de si mesmas. Fez um filme inteiro sobre isso, As Canções. Mas talvez nenhuma performance do tipo tenha alcançado tão fundo na personalidade de alguém como o “My Way” de Henrique. Ou produzido uma cena tão enternecedora quanto aquele dueto tonitruante num modesto conjugado de homem solitário.