O universo de Lupicínio Rodrigues, coalhado de mulheres traidoras, invocações de vingança, acusações de calúnia, juramentos de “nunca mais” e gritos de “volta!”, inunda o novo filme do mestre Maurice Capovilla. Nervos de Aço, projeto acalentado há pelo menos 20 anos, chega enfim às telas como um melodrama no sentido original da palavra de origem grega: drama + música. No caso de Lupicínio, a opção é mais que justificada, haja vista a frequência com que suas letras destilam as mágoas do amor e o inferno do ciúme.
A ação se passa em Porto Alegre, terra onde o compositor nasceu (1914) e morreu (1974), mas a cidade não chega a ter papel preponderante. Quase tudo acontece em interiores exíguos, onde os personagens negociam seus afetos quase de pele a pele. São eles os próprios músicos que preparam o pocket show “Nervos de Aço”. O maestro, pianista e cantor Joel (Arrigo Barnabé) namora a cantora Maria Rosa (Ana Lonardi) e acredita que a flagrou “nos braços de um tipo qualquer”. A moça nega, garante que está sendo acusada “de um mal que eu não fiz”. Mas nem tudo o que as músicas dizem corresponde à verdade, basta ver o vínculo que Maria Rosa mantém com o violonista e cantor “Carioca” (Pedro Sol). E por aí vão as coisas, num permanente vai e vem entre a relação dos músicos e os ensaios do show.
Nesse processo, a necessidade de compreender cada sentimento para melhor interpretar as canções confunde-se com a discussão das relações entre os músicos. Ensaiar o show equivale a botar os amores em pratos limpos e mesmo questionar “a concepção rudimentar que Lupicínio fazia da relação amorosa”, como diz Capovilla.
Capô é um realizador de conhecida veia crítica, que nos anos 1960 e 70 apontou para o funcionamento do capitalismo e da exclusão social. Estiveram em sua mira o estrelato (Bebel, Garota Propaganda), os bastidores do esporte (Subterrâneos do Futebol), a sobrevivência na miséria (O Profeta da Fome) e os pequenos marginais urbanos (O Jogo da Vida). De alguma maneira, foram sempre artistas que estiveram no foco de seus trabalhos mais conhecidos. No mais recente Harmada, ele direcionou o olhar para o teatro. Em Nervos de Aço, é a vez da música. Mas não se trata apenas de ilustrar a lógica perversa de Lupicínio. O roteiro de Capô traz personagens contemporâneos que insistem em combatê-la. Maria Rosa não aceita o papel de mulher-cobra, nem Joel se encaixa bem no de amante vilipendiado. Haverá mesmo um quarto vértice a bagunçar o triângulo clássico tão devassado pelo autor de Se Acaso Você Chegasse. Na verdade, entre as letras das canções e a maneira como os personagens delas se apossam existe um abismo que é não apenas geracional, mas também de classe e de formação cultural.
A parte dramática do filme é inteiramente subjugada pela parte musical, o que deixa Nervos de Aço com cara de filme-show. Ainda assim, o carisma dos atores-músicos principais garante uma permanente simpatia para as histórias pessoais alinhavadas entre uma canção e outra. Musicalmente, o deleite é praticamente ininterrupto. Arrigo, ora suave, ora rascante, leva para a interpretação as ambiguidades do macho lupiciniano. Ele é um líder que mantém a cena sempre na borda de alguma tensão. Ana Lonardi, de voz límpida e quente, contrapõe a inconformidade da mulher de hoje à visão tradicional da fêmea traiçoeira. Destacam-se ainda as atuações sólidas de Pedro Sol e Juliana Thomaz, esta no papel da produtora que sabe bem o que quer, mesmo que não consiga tudo.
Nervos de Aço tem uma amável condição de filme de família, uma vez que foi produzido e montado por Marilia Alvim, esposa de Capô, e tem direção musical de Matias Capovilla, filho do diretor, em cena também como um dos músicos. Os arranjos de Matias são largamente responsáveis pela qualidade musical do filme. Eles variam do bolero à salsa e ao jazz, numa riqueza de ritmos e inflexões que faz jus à fertilidade da obra de Lupicínio. Muitas releituras já foram feitas de suas canções, mas estas aqui bem que merecem sair num CD.
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