Do pornô ao pastor, o palhaço o que é?

A trajetória real de Arlindo Barreto, de ator de pornochanchadas a uma das identidades secretas do palhaço Bozo e depois a pastor evangélico hoje radicado em Miami, é um argumento e tanto para o cinema. O roteirista Luiz Bolognesi e o diretor Daniel Rezende fizeram BINGO, O REI DAS MANHÃS como uma success story em que a determinação e o poder de sedução do personagem são até certo ponto sabotados por uma vida desregrada de orgias, álcool e drogas. Se isso soa moralista, faz parte do modelo dramatúrgico.

No filme à clef, Arlindo Barreto é Augusto Mendes, Bozo é Bingo, a Globo é TV Mundial, o SBT é TVP, Xuxa é Lulu, e assim por diante. Gretchen, que não escapou ao charme do garanhão, é Gretchen mesmo. Augusto é um personagem em permanente metamorfose, levado por um entusiasmo natural que, a partir de certo ponto, é aditivado pela cocaína e outros baratos. Pai amoroso, descuida do filho depois que vira celebridade, mas não negligencia a mãe, atriz em fim de carreira por quem nutre uma admiração meio edipiana. Isso vem explicitado numa cena quase grotesca de paródia às novelas.

Na derradeira metamorfose, ele é levado, por amor à produtora do programa e às luzes da ribalta, a se apresentar em igrejas evangélicas. A apoteose final, numa narrativa meio irônica de redenção espiritual, talvez garanta a cumplicidade de plateias que seguram na mão de Deus.

BINGO está ganhando aplausos da crítica e de espectadores nas salas. É de fato um filme ágil, muito bem produzido, dirigido com cabeça de montador (Daniel Rezende montou Cidade de Deus, Diários de Motocicleta, Tropa de Elite, Robocop e parte de A Árvore da Vida, entre outros). Tem uma vibe positiva e superficialmente ousada, além de traços de melodrama e superação que sempre agradam ao público médio. E ainda se beneficia da eventual adesão de antigos fãs do Bozo brasileiro, como o próprio diretor.

Vladimir Brichta sai-se bem no seu melhor e mais desafiador papel no cinema, formando com o cinegrafista de Augusto Madeira uma dupla cômica eficaz. Os anos 80 ganham uma pátina visual vintage de cores fortes na fotografia de Lula Carvalho e uma moral irreverente que antecede a hegemonia do politicamente correto. É o que explica, por exemplo, que o palhaço televisivo alcance o sucesso mediante a revanche humilhante sobre uma criança, o estímulo à subversão das normas e a exploração de referências ao sexo.

A par de qualidades como essas, é preciso também ressaltar que BINGO está muito distante do rótulo de “novo grande filme brasileiro” que lhe tem sido aplicado. A qualidade dos diálogos é bastante irregular e são muitos os chavões de gênero em torno da ascensão do palhaço na TV e de suas relações familiares. As interações de Augusto no estúdio com o executivo “gringo” e a produtora soam esquemáticas, com a agravante de extraírem de Leandra Leal uma rara atuação decepcionante. Os delírios de imaginação que colocam o protagonista em situações extremas são reiteradas “pegadinhas” no espectador que acabam soando baratas. O passeio de carro na praia com o filho é um exemplo de clichê vazio que parece atender mais a uma fórmula que a uma necessidade narrativa real. O mesmo se dá com o plano-sequência virtuosístico que – acredito – combina drone, câmera manuseada e efeitos digitais para sair de um apartamento e entrar em outro prédio dentro de uma passagem de tempo após Augusto se ferir gravemente. O exibicionismo da cena supera qualquer outra justificativa.

Essas minhas restrições pontuais talvez sejam vistas como rabugice de crítico. O fato é que minha apreciação do filme foi sendo minada por essas concessões ao espetáculo, que acabam ofuscando qualquer viés crítico à máquina devoradora da cultura de massa. A meu ver, BINGO perdeu a chance de ser o grande filme brasileiro sobre a televisão e a embriaguez do sucesso. Apesar disso, vai continuar agradando a muita gente e, quem sabe, apontando o caminho da salvação quando todos os vícios ficarem para trás.

10 comentários sobre “Do pornô ao pastor, o palhaço o que é?

  1. Pingback: Los latinos al Óscar 2018: Brasil | Premios Óscar Latinos

  2. Hola que tal, soy de un blog de WordPress Argentina, me gustaría citar una parte de tu crítica cinematográfica. Dejaré el link de esta crítica en agradecimiento.

  3. Carlos Alberto, eu diria que concordo em algumas coisas e discordo em outras. Como você acho o filme muito bem dirigido é realizado – fotografia, direção de arte, edição e desenho de som. Acho um grande trabalho do Vladimir Brichta, um excelente ator que não rendia no cinema o que fez no teatro e na TV. Discordo de você em relação à Leandra Leal, ela fez um trabalho contido e delicado. Muitas vezes vejo críticas a atrizes exuberantes quando estas fazem papéis que exigem contenção – ela está muito bem, seu personagem é que talvez merecesse um pouco mais de ambiguidade e riqueza. Não acho que a direção de Daniel Rezende e suas escolhas sejam exibicionistas de maneira nenhuma, mas também, como você, estranhei a cena com a mãe, fora do tom do resto do filme. Uma coisa que talvez explique a bilheteria abaixo do que todos esperávamos é que o filme que vinha em uma pegada de comédia dramática, com o surgimento do tema das drogas, assume um tom de puro drama, trágico não vejo. Assim, tal mudança, raramente dá certo com o grande público. Assim o filme passa a se desenhar como um drama e ao final, com a redenção através da igreja, encerra com um final que busca ser edificante, mas não cola. Isso não quer dizer que o filme não pudesse ter um final de superação, as pessoas são capazes de superar certas coisas em suas vidas, mas o caminho escolhido, edificante e afirmador da visão da personagem de Leandra é duro de engulir. Mesmo se for esgrimido que isso foi o que realmente aconteceu. Eu diria que em uma ficção o que aconteceu é ponto de partida e a forma como se apresenta o que ocorreu, o olhar do escritor e do realizador é o que interessa. Eu não creio que o filme pretendia fazer uma crítica à televisão brasileira, mas acaba fazendo por via indireta. O filme pretendia contar a trajetória de um homem que foi subjugado pelo personagem que atuou e interpretou e quando saiu da linha foi cuspido pelo “sistema” (palavra velha). O problema é que um indivíduo é um pacote de luz e sombra. O exito de Bingo vinha junto com sua sombra, seu tesão, sua desmedida ambição, sua pulsão autodestrutiva. O filme decidiu não castigá-lo mas redimi-lo de forma patética, enquadrando-o de baixo para cima em meio aos aplausos dos crentes. Não dá, esse final é a única sequência ( juntamente com a cena da mãe) claramente forçada. E mais triste, para mim pois estava gostando muito do filme, retira a transcendência da história.
    Continuo gostando bastante do filme, é um trabalho de muitas virtudes, acho que as cenas esquemáticas, funcionavam dentro da proposta de uma comédia dramática e achei em geral os diálogos muito bons. Parabéns a todos os que o realizaram!

  4. Arlindo,quando o conheci no Festival de Gramado, ator de “A Intrusa” do saudoso Carlos Hugo Christensen,idos 80,era pura vaidade, deu trabalho para o divulgador aqui. Vou ver por curiosidade.

  5. Pingback: Do pornô ao pastor, o palhaço o que é? — carmattos | O LADO ESCURO DA LUA

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