O OUTRO LADO DA ESPERANÇA é mais uma fábula característica de Aki Kaurismäki. Como “O Homem sem Passado” e “O Porto”, trata-se de um forasteiro sob ameaça, que sobrevive graças à generosidade de gente pobre e trabalhadora. À insensibilidade da burocracia oficial e à crueldade dos fascistas de plantão sobrepõe-se a solidariedade dos deserdados e de outros expatriados.
Mas há sempre um dado de incongruência a perturbar a lógica da fábula. Aqui temos um refugiado sírio que chega a Helsinque num navio cargueiro (tal como o garoto africano chegava a Le Havre em “O Porto”) e cujo caminho vai se cruzar com o de um ex-vendedor de camisas que acabou de montar um pequeno restaurante. Este é um homem que não consegue ser tão mau quanto gostaria, nem tão bom quanto deveria. Ele e seus empregados, mais um imigrante iraquiano, vão constituir uma nova comunidade para o rapaz vindo de Aleppo, onde perdeu quase toda a família.
As incongruências são fundamentais tanto para a dramaturgia quanto para o estilo de Kaurismäki. Ele criou uma imagem peculiar da Finlândia no cinema, baseada na melancolia das gentes e na sensaboria das coisas. Basta ver a decoração desenxabida dos interiores, os móveis e objetos depauperados que parecem combinar épocas desconexas, os figurinos canhestros, os músicos jecas. E sobretudo a postura impassível dos atores, razão de um humor todo particular, mas que não nega raízes em Buster Keaton.
A introdução dos dois personagens centrais é exemplar: Khaled surgindo de dentro de um container de carvão e Wikström separando-se da mulher numa cena sem palavras. A partida de pôquer em que Wikström se capitaliza para adquirir o restaurante, assim como a tentativa de transformá-lo numa casa de sushi, são momentos divertidíssimos nos quais o diretor comprova seu senso de casting e o completo domínio de uma linguagem tão simples quanto desconcertante.
Numa cena, Wikström queixa-se de estar cansado de tanta paz e silêncio. Essa Finlândia meio fora do tempo e quase fora do espaço político europeu é mesmo um canto arredado do mundo. A entrada de imigrantes e refugiados tem sido reduzida por conta do desemprego e divergências políticas quanto à questão do asilo. As deportações têm sido constantes e o país gelado está longe de ser um paraíso para quem vem do Oriente Médio. Em seu filme, Kaurismäki usa o humor e tematiza a compaixão, mas não esconde que a esperança é uma ilusão e a intolerância, uma lâmina afiada.