NO CORAÇÃO DO MUNDO
Um filme sobre pequenos desejos: ter uma festa de aniversário legal, trocar de carro e entrar pro Uber, fumar um baseado sem que a avó sinta o cheiro, comprar uma casinha nem que seja bem longe…
Um filme sobre grandes desejos: vingar a morte do filho, dar o grande lance que pode mudar a vida da noite para o dia e ir parar NO CORAÇÃO DO MUNDO.
Dessas coisas miúdas e graúdas se faz o novo lançamento da produtora mineira Filmes de Plástico.
Permanece a fidelidade canina à paisagem da periferia de Contagem, onde já se filmaram tantos curtas e os longas Ela Volta na Quinta e a obra-prima Temporada, ambos de André Novais Oliveira. Dessa feita, André aparece como diretor assistente. NO CORAÇÃO DO MUNDO foi escrito e dirigido por Gabriel Martins e Maurílio Martins, fundadores da produtora em 2009, juntamente com André e o produtor Thiago Macêdo Correia. Gabriel e Maurílio rodaram o longa entre 2016 e 2017, desenvolvendo o roteiro a partir dos seus curtas Contagem e Dona Sônia Pediu uma Arma para seu Vizinho Alcides.
Durante três quartos de suas duas horas de duração, o filme é uma crônica do cotidiano de seis personagens e seus poucos familiares. Existe uma influência explicitada de Carlão Reichenbach no tratamento afetuoso daquelas figuras do arrabalde – não tanto anjos, mas vistos com certa ternura no desamparo de suas ilusões. Sucedem-se as vinhetas naturalistas extremamente bem encenadas, com diálogos de tamanha fluência e legitimidade local que muitas vezes é difícil assimilar o sentido e o contexto, mas que absorvemos sinteticamente como pura autenticidade.
O olhar afetuoso para as ladeiras, comunidades e moradores daqueles bairros não atenua o clima de violência anunciado já no rap de abertura, que compara a região ao Texas e parece piscar um olho para o estilo de Spike Lee. Estamos, de fato, numa bela confluência do neo-neorrealismo bem-humorado que já vem sendo praticado pela Filmes de Plástico com um cinema contemporâneo de gênero sobre crime urbano e pobreza.
A ação do filme vai paulatinamente se concentrando em torno de três personagens: Marcos (Leo Pyrata), paralisado numa rotina de biscates e pequenos delitos; Ana (Kelly Crifer), sua namorada, cobradora de ônibus que cuida do pai demente; e Selma (Grace Passô), comerciante de fotografias que planeja um grande e arriscado roubo. A meia-hora final é um thriller de assalto conduzido com eficiência e desfecho surpreendente.
Embora haja uma certa condescendência com a conversa fiada, que estende a metragem para além do necessário, e a estética em geral primorosa vacile aqui e ali, os diretores demonstram uma fina compreensão do universo abordado e um apuro extraordinário no uso da linguagem e na condução do elenco. Num conjunto mais que perfeito, destacam-se pelo tempo maior de tela o múltiplo Leo Pyrata, a fofice mineiríssima de Kelly Crifer e a soberania de Grace Passô, que graça a graça, passo a passo, vai se solidificando como a melhor atriz brasileira da hora.
O senso afetivo de comunidade extrapola de Contagem para a comunidade mineira e cinematográfica brasileira. Além da menção a Reichenbach, vê-se a última aparição do cineasta Geraldo Veloso (1944-2018), numa ponta como o garçom Geraldo, a significativa participação de Karine Teles num papel que relembra sua estreia em Riscado e a atuação bestificante de MC Carol de Niterói como a chapadona Brenda.
NO CORAÇÃO DO MUNDO é mais uma vitória do cinema de Minas, ainda que, dessa vez, com um filme sobre as dinâmicas do fracasso.