Lançados em plataformas online, O PAI e ZOMBI CHILD tratam o sobrenatural com ferramentas pouco comuns. E certa inconveniência em momento de luto global.
Esoterismo com ironia
Uma gente melancólica, uma polícia displicente, um hospital corrupto. O retrato da Bulgária fornecido pelos diretores Kristina Grozeva e Petar Valchanov continua amargo, como já vimos em A Lição e Glory. Mas em O PAI (Bashtata), o eixo temático deixa de ser a ética social e passa, digamos, a uma ética mais pessoal. Tudo começa com a morte de Valentina, uma ex-atriz de épicos comunistas vivendo na periferia rural de Sofia.
Seu filho Pavel (Ivan Barnev), cineasta publicitário, chega atrasado para o funeral e encontra o pai (Ivan Savov) obcecado por refazer contato com a mulher falecida – ou pelo menos com sua “aura”. Vivendo uma relação atribulada, Pavel o acompanha numa jornada esotérica cheia de percalços e desentendimentos. Como se não bastasse, Pavel ainda se vê às voltas com problemas no trabalho e com a esposa que ficou em casa por motivo que será oportunamente revelado.
Este é um típico drama baseado no que os personagens escondem uns dos outros por razões de culpa ou de cuidado. Mas é também uma peça de suave ironia quanto às crenças em vibrações e mensagens espiritualistas. Algumas coincidências e circunstâncias curiosas ligadas a geleia de marmelo e mensagens de celular, sugerem, de fato, outro tipo de transcendência – aquela que pode existir no âmbito do acaso e dos enganos.
O PAI não alcança o nível de interesse dos dois filmes anteriores da dupla, arrastando-se aqui e ali em situações de pouco rendimento dramático. O roteiro deixa pelo menos uma ponta solta, o episódio das fotos da mulher no caixão. Ainda assim, é uma singularidade que merece atenção, inclusive pela forma como desenha a força atávica da relação pai-filho, que parece resistir a todas as provas.
Exotismo e lolitismo
Dois mundos muito distintos se contrastam em ZOMBI CHILD, que foi lançado nas plataformas digitais iTunes, Google Play, YouTube, Vivo Play e Now. De um lado, a história soturna de um morto-vivo escravizado num canavial do Haiti, em 1962. De outro, um grupo de adolescentes brancas numa escola da Legião de Honra na França atual. No Haiti, tudo é escuro e lúgubre. Na França, é claro e bem-posto. Mas a criação de Bertrand Bonello (O Pornógrafo, Tirésia, Saint Laurent, L’Apollonide, Nocturama) pretende criar uma ligação misteriosa entre esses dois universos.
O elo é Mélissa, a única aluna negra da escola, descendente de haitianos, que exerce um misto de atração e temor sobre as colegas. A trama, bastante bizarra, vai levar uma delas a se envolver com a família de Mélissa e descobrir segredos do vudu haitiano.
Bonello é um cineasta extremamente irregular, e ZOMBI CHILD não está entre seus melhores trabalhos. O filme é dominado por uma franca exploração do exotismo na religião de matriz africana, com seus rituais de transe e possessão, assim como do lolitismo na caracterização das meninas.
Há uma série de intenções malogradas, a começar pela compreensão superficial da mitologia dos zumbis na cultura do Haiti. Bonello quis também associar a estranheza desse tema macabro com o comportamento excêntrico das meninas francesas e sua “irmandade literária”, que se reúne às escondidas e à luz de velas. Por fim, esboça-se um rascunho de crítica à potência francesa que colonizou o Haiti e fez uma revolução cujas promessas não foram cumpridas. A escola da Legião de Honra é um reduto de louvação dos “valores nacionais” em oposição aos costumes bestiais do Haiti tradicional.
A confusão é grande em todas as esferas do filme, com abertura para interpretações canhestras do ponto de vista etnográfico. O mix de conto de obsessão amorosa adolescente e fantasia sobrenatural no limiar do terror resulta numa anulação recíproca. Não funciona uma coisa nem outra. Mau momento de um diretor inquieto que gosta de arriscar.