OS FILHOS DE FIERRO no Belas Artes à la Carte
A plataforma Belas Artes à la Carte tem no cardápio um filme raro sob vários aspectos. Os Filhos de Fierro (Los Hijos de Fierro) é raro pelo simples fato de não circular amplamente desde que foi concluído em 1975. Ficou censurado por nove anos na Argentina e teve um lançamento obscuro no Brasil em 1988. É raro por ser um filme de ficção ativista de Fernando Solanas, mais conhecido por seus documentários (La Hora de los Hornos, Memoria del Saqueo, La Dignidad de los Nadies) e pelas ficções que o popularizaram nos anos 1980 e 1990 (Tangos – o Exílio de Gardel, Sur, A Viagem). É raro principalmente pela linguagem livre, inspirada nos poemas épicos El Gaucho Martín Fierro e La Vuelta de Martín Fierro, de José Hernández.
Narrados com garbo gauchesco pelos atores Aldo Barbero e Fernando Vegal, os poemas conduzem a narrativa na maior parte dos 134 minutos. Referem-se ao exílio de Martín Fierro, herói mítico da rebeldia argentina contra os dominadores espanhóis. Solanas, porém, usa o personagem fictício no lugar de Juan Domingo Perón, que se exilou na Espanha entre o golpe militar de 1955 e seu regresso à Argentina e ao poder em 1973. Assim, os personagens clássicos dos poemas viram militantes peronistas que mantêm acesa a chama do peronismo durante os anos de ditadura militar. Eles lutam na resistência em nome da manutenção da unidade popular em torno do seu líder exilado. São presos e torturados, entram em conflito e se compõem com os pelegos. Contam com o apoio do dissidente Capitão Cruz, aventura que termina numa carnificina comandada pelos milicos.
Para quem conhece a história e a mitologia argentinas, as muitas reviravoltas do roteiro ficam mais fáceis de compreender. A ação se alterna entre os pampas, onde se encontra Martín Fierro, e os bairros industriais de Buenos Aires, onde atuam os peronistas. A narrativa combina a expansividade do poema épico com cenas clássicas de sublevação popular, discussões da militância e até uma sequência tratada como comédia muda, contando com animações de quadrinhos e uma narração em forma de cordel argentino. A trilha sonora de Roberto Lar é feita de sonoridades tangueras embebidas na proverbial melancolia portenha.
Mesmo quem não consiga decifrar todas as referências pode se deliciar com o estilo efusivo de Solanas e com a magnífica fotografia em preto e branco do futuro diretor Juan Carlos Desanzo, que em muito lembra as imagens de Luiz Carlos Barreto e Dib Lutfi em Terra em Transe. A equipe era composta por membros do grupo Cine Liberación, fundado por Solanas e Octavio Getino em 1966, ao qual se juntou Gerardo Vallejo um ano depois.
Nessa trupe, alguns nomes merecem consideração especial. Julio Troxler, que interpreta o “Filho Mais Velho”, foi um político e militante peronista assassinado por paramilitares ainda durante a produção do filme. Antonio Ameijeiras (o “Filho Mais Novo”) era o mesmo Tito Ameijeiras que viveria e trabalharia no Brasil até falecer em 2018, tendo sido ator de filmes brasileiros e elo importante entre o nosso cinema e o latino-americano. Por fim, cabe citar Edgardo Pallero, um dos produtores do filme, que morou no Brasil nos anos 1960 e se incorporou à chamada Caravana Farkas.
>> Os Filhos de Fierro está na plataforma Belas Artes à la Carte
Quem não tem acesso à plataforma pode ver uma versão legendada em espanhol no Youtube.
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