Dorival e Dora

Sobre o documentário DORIVAL CAYMMI – UM HOMEM DE AFETOS e a peça virtual DORA  

Ondas de simpatia a partir de Caymmi

Quatro documentários de longa metragem sobre Dorival Caymmi surgiram nos últimos 19 anos, sendo três de 2018 para cá. Cabe perguntar se há lugar para tanto. A resposta vai depender do que cada um privilegia. Um Certo Dorival Caymmi (Aluisio Didier, 2002) contou sua trajetória biográfica e musical. Dorivando Saravá – O Preto que Virou Mar (Henrique Dantas, 2020) abordou a espiritualidade e a negritude do compositor, além da sua relação atávica com o mar. Não vi Dê Lembranças a Todos – Dorival Caymmi (Fabio Di Fiore, Thiago Di Fiore). Já Dorival Caymmi – Um Homem de Afetos (Daniela Broitman, 2019) sai em busca das histórias de família e amizades, bem como da gênese de algumas composições clássicas.

O núcleo de ouro do documentário de Daniela são dois materiais inéditos: um misto de encontro íntimo e sarau em torno de Caymmi na casa dos amigos Lígia e Marcelo Machado em 1988; e um concerto doméstico na casa de Tom Jobim. Em ambas as ocasiões, mas especialmente na casa de Lígia e Marcelo, Dorival se espalha em histórias saborosas de sua vida com aquele inconfundível tempero baiano. “Aprendi a gostar de mim mesmo gostando dos outros”, eis uma das máximas da filosofia do “Buda Nagô”, como o chamou Gilberto Gil.

A partir do temperamento de Dorival, como uma pedra jogada num lago, aros de simpatia se abrem ao redor. Em entrevistas recentes, os filhos Nana, Dori e Danilo, além da nora Ana Terra e dos “herdeiros” Caetano e Gil, completam o elenco para revelar pequenas intimidades e grandes influências. O depoimento mais tocante, para mim, foi o da cozinheira Cristiane de Oliveira, sobre o momento em que segurou a mão de Caymmi enquanto ele morria.

A vaidade brincalhona do homem que se achava bonito, a história do mulherengo que não admitiu a separação da filha e o jeito malemolente da “Carmem Miranda em slow motion” (no dizer de Caetano) são alguns dos ingredientes que fazem desse filme um interlúdio de prazer em meio ao pesadelo da atualidade. Quem nos dera viver num país que fosse parecido com a alma de Caymmi.

>> Dorival Caymmi – Um Homem de Afetos passa online nesta quinta (18/3) às 21h e sexta (19/3) às 17h no Festival Internacional de Cinema de Santos. Outras exibições estão previstas ainda este mês no Bafici (Buenos Aires) e em abril na Mostra Mulheres do Audiovisual (1 e 10/4, às 18h).


Dora/Sara, Sara/Dora

O projeto multiplataforma de Sara Antunes a propósito da médica e ativista Maria Auxiliadora Lara Barcelos (Dora) se desdobra agora numa peça de teatro online que amplia a proposta simbiótica entre atriz e personagem. O espetáculo Dora, experimental na forma e emocional no fundo, lança mão de diversos recursos de trânsito semiótico, como espelhos, reflexos, transparências, ecos e projeções. Uma engenhosa edição combina a atuação ao vivo de Sara em sua casa com materiais pré-gravados.

Ao mesmo tempo, existem ali signos muito concretos, como o vestido vermelho que Dora recebeu da mãe, documentos, fotos e as cartas manuscritas que se mesclam ao texto original da atriz-autora-diretora. Para cada fase da trajetória de Dora, um objeto-símbolo se destaca: o balde das torturas na prisão da ditadura brasileira, as hélices de um ventilador que aludem ao voo para o exílio no Chile e, para o fim trágico em Berlim, a agulha que costura/sutura mas também fere.

Dora/Sara é um encontro de afetos e similitudes. A peça é também um concerto de quatro vozes femininas irmanadas num mesmo sentimento. À voz de Sara se juntam as de Dora e das mães das duas. A participação em corpo e voz da mãe de Sara, Ângela Bicalho, com suas afinidades com a própria Dora, traz uma camada comovente e explicita a verdade extracênica que move todo esse projeto. Por vários atalhos poéticos, Maria Auxiliadora é trazida de volta à vida virtual.

>> Dora está em cartaz até 4 de abril por intermédio da plataforma Sympla. Os ingressos são gratuitos, ficando para cada um a decisão de fazer uma contribuição voluntária.

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